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20 anos de “Lírios aos Anjos”: turnê, batalhas e redenção no álbum mais intenso da Dance of Days

Em entrevista exclusiva, Nenê Altro fala sobre a criação do álbum icônico, sua transição de gênero, a relação com a cena underground e o novo projeto solo.

Musikorama|Rodrigo d’SalesOpens in new window

Dance of Days com nova formação para a turnê comemorativa Luringa

Poucas figuras na história do rock brasileiro personificam a palavra “intensidade” com a mesma propriedade que Nenê Altro. Por mais de três décadas, à frente da icônica banda Dance of Days, ela tem sido a cronista de uma geração, transformando suas dores, fúrias, amores e, acima de tudo, suas complexas batalhas internas em uma obra que é, em essência, um diário aberto. Artista multifacetada — escritora, musicista, ativista anarquista e agitadora cultural — Nenê nunca se contentou com o superficial. Sua trajetória é um mapa de reinvenções, e em nossa conversa, ela nos guiou por territórios íntimos que ressignificam toda a sua carreira.

O Diário Secreto de Lírios aos Anjos

Musikorama: Este ano é comemorativo, Lírios aos Anjos está completando 20 anos. Por que este é considerado um dos álbuns mais emblemáticos da Dance of Days?

Nenê Altro: É, então. Se por um lado A Valsa de Águas Vivas (2004) foi o álbum que consagrou a Dance of Days, que teve “Adeus Sofia” com a Fernanda Takai (Pato Fu) e “Vai Ver é Assim Mesmo” com o Badauí (CPM22), Lírios aos Anjos foi o álbum da explosão na MTV. A Dance of Days começou a ficar conhecida na MTV pelo Lírios aos Anjos. Por isso, ele tem esse alcance com um outro nicho do nosso público. Quem veio até o Valsa acompanhou a jornada desde o Six First Hits (1997), e uma outra galera pegou no Lírios porque foi onde começou a aparecer mais na MTV.

Musikorama: Em Lírios aos Anjos, o Dance of Days abraçou uma nova estética e filosofia, com traços mais góticos. O que motivou essa virada na identidade da banda?


Nenê Altro: Quando eu comecei no punk, ali nos anos 80, eu comecei no Dark. Mesmo quando eu fui para o anarcopunk, eu sempre escutei Dark Wave e Death Rock. Com a chegada do Valsa, eu senti aquilo começando a voltar a aflorar em mim. Em 2004, o “Sick Terror” — banda da qual Nenê também foi vocalista — foi para a Europa, fizemos 16 países. E ali eu vi uma cena gótica/punk misturada com a cena hardcore, não era tudo separado como aqui no Brasil. E daí eu comecei a me reinserir, a me encontrar de novo. O pessoal falou que eu fui para a Europa de bermuda e chinelo e voltei de calça de couro, sem camisa e cabeluda [risos]

O Lírios aos Anjos foi a minha última tentativa de libertar a minha essência feminina. Todo aquele disco trata do meu conflito interno.

(Nenê Altro)

Musikorama: Lírios aos Anjos parece ser o uma das obras mais intensas do catálogo da Dance Of Days. Como tem sido revisitar todos aqueles textos?


Nenê Altro: É, então. Eu sofri com depressão por 25 anos. No Lírios, apesar do esforço contínuo para exteriorizar o inverso, eu estava num dos picos. E o Lírios hoje eu falo foi a minha última tentativa de libertar a minha essência feminina, o que só consegui 15 anos depois. Todo aquele disco trata do meu conflito interno. Em “Linda, A dor não é tão glamorosa afinal” a Linda sou eu. Eu falando para mim mesma que a dor que eu sentia não tinha glamour nenhum. “Selene” fala de quando eu percebi que estava na dependência química. “Vaudeville” já fala sobre a questão de gênero. Eu fiz questão de, na letra, colocar os artigos certos. Tudo ali tem um porquê.

Nenê Altro apresenta show com emoção e entrega Mazzei
O que os outros acham não é da minha conta. Eu sei o que eu sou e onde estou. Ponto final.

(Nenê Altro)

Musikorama: Hoje, ao interpretar essas músicas, você faz algum tipo de concessão ou ajuste nas letras?


Nenê Altro: Não, de jeito nenhum. Aquilo é intocável — foi composto naquele momento. Mantenho tudo, inclusive o gênero masculino. Representa um período. Não me atinge emocionalmente de forma negativa, porque, entre todas as pessoas, eu sou a que mais sabe quem sou. O que os outros acham não é da minha conta. Eu sei o que sou e onde estou. Ponto final.

Uma Saga em Capítulos: A Obra Como um Grande Livro

A percepção de que sua obra é um registro intocável ganha ainda mais força quando Nenê revela sua metodologia de composição. Seus álbuns não são coleções aleatórias de músicas, mas sim capítulos de uma narrativa maior e interconectada. Essa abordagem, influenciada por sua paixão pela literatura, transforma a discografia da Dance of Days em uma saga épica, onde cada disco é uma peça fundamental para a compreensão do todo.

Musikorama: Lírios aos Anjos termina com a faixa “Camposanto 300 por Hora (Mr. Hyde Mode On)” e o Insônia 2008 (2007) abre com uma canção que parece ser uma continuação da história.

Nenê Altro: Sim, todos os álbuns do Dance of Days são conectados e têm uma narrativa. São como livros, com começo, meio e fim. Contam uma história — não tem música jogada aleatoriamente. Isso vem desde A História Não Tem Fim (2001). Tenho essa forma de organizar as coisas por causa do meu viés literário, de ser escritora.

Dance of Days celebra 20 anos de "Lírios aos Anjos" Luringa

O Projeto de Uma Vida: “A Banda Anarco-Individualista”

A longevidade da Dance of Days, marcada por diversas formações, sempre gerou curiosidade. Nenê esclarece que, desde sua concepção, a banda foi pensada como um projeto pessoal, um veículo para sua expressão particular, com músicos que circulariam ao seu redor. Essa visão centralizada explica não apenas a constância firme da essência da banda, mas também a distinção clara entre a Dance of Days e seus outros projetos, como o sombrio Nenê Altro & O Mal de Caim.

Musikorama: Sea Dance of Days é um projeto pessoal seu, o que a diferencia do seu trabalho solo?

Nenê Altro: Quando a Personal Choice acabou, eu decidi que não ia mais ter banda. Ia fazer um projeto meu — só meu — com músicos que circulariam. Para mim, sempre foi assim. As pessoas perguntam: “Por que muda tanto a formação?”. Simples: porque é o meu projeto pessoal. São músicas sobre a minha vida. O Dance of Days tem uma narrativa específica e está conectado a uma verdadeira egrégora de pessoas. Então acho que existe uma certa maternidade ali, na hora de escolher, de ter alguns cuidados. Coisa que, quando eu crio no Mal de Caim, por exemplo, já vem mais espinhosa, sem filtro.

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A Travessia: Transição, Ódio e Acolhimento

Em outubro de 2020, a verdade que sussurrava nas entrelinhas de suas canções veio à tona: Nenê Altro assumiu publicamente sua identidade como mulher transexual. A notícia foi recebida com uma onda de apoio por parte da banda e de seus seguidores, mas também desencadeou um violento linchamento virtual. Em um dos momentos mais vulneráveis de sua vida, ela relata ter enfrentado ataques transfóbicos que a desorientaram profundamente. Esse processo, no entanto, a levou a encontrar novas formas de força e comunidade, primeiro na Casa de Acolhimento Florescer e, posteriormente, encontrando paz na Ilha de Cananéia, que foi crucial para que pudesse viver sua transição de forma plena.

Musikorama Music: Como que a sua transição de gênero foi recebida pela banda e por seu público?

Nenê Altro: Na banda eu tive um suporte muito legal. Mas sofri muita rejeição nas redes sociais. Um linchamento virtual. Aquilo me desorientou ao ponto de eu sair novamente sem rumo por São Paulo. Foi onde encontrei a Casa Florescer, uma casa de acolhida para mulheres trans, onde recebi apoio. Mas eu estava em um surto emocional e ficava respondendo a essas pessoas na internet, sabe? Tentando justificar minha existência. Foi aí que uma fã muito especial me disse: “Você que sempre nos ensinou a não ouvir o mundo, que m**** você está fazendo respondendo esses idiotas?”. Aquilo me acordou. Ela me convidou para ir para Cananéia-SP, e foi lá que a conheci e que tornou-se minha esposa, Alyne, e onde finalmente pude viver a minha transição com tranquilidade.

Você que sempre nos ensinou a não ouvir o mundo, que m*** você está fazendo?

(Alyne Scharmann)

Alyne Scharmann e Nenê Altro juntas arquivo pessoal

A Bússola Interna: A Arte de Agradar a Si Mesma

Ao longo de toda a sua carreira, Nenê Altro colecionou tanto admiradores devotos quanto críticos ferrenhos. A dualidade de sua arte, que transita entre o hardcore mais agressivo de projetos como o Sick Terror e as baladas confessionais da Dance of Days, sempre gerou reações extremas. Lidar com essa pressão, no entanto, parece ser a base de sua filosofia artística: a autenticidade não é negociável, e a primeira pessoa a ser agradada é sempre ela mesma.

Musikorama: Como você equilibra admiração e haters dentro do universo que construiu ao longo da sua carreira?

Nenê Altro: Na arte, só existe uma regra: agradar a você mesma. O resto, você tem que saber lidar. Se você não tiver haters, no mundo como está, você está fazendo alguma coisa errada [risos]. É preciso entender que as pessoas têm jornadas ímpares e cada uma está numa etapa diferente de maturidade. Você não pode julgar os outros de acordo com o seu nível. Se a pessoa está numa esfera emocional reativa, o problema não é seu. Seu problema é fazer uma boa arte e se agradar.

A Irreverência Como Estratégia de Mercado

Em um mundo onde a arte frequentemente precisa se curvar às demandas do mercado para sobreviver, Nenê Altro parece ter encontrado uma fórmula própria, baseada na irreverência e na confrontação. Quando questionada sobre a necessidade de aplicar filtros em sua obra para torná-la mais “vendável”, sua resposta revela uma mente que transforma a crítica em combustível e a zombaria em marketing, uma tática que ela emprega desde os primórdios da banda.

Musikorama: Na hora de “vender a arte”, até que ponto você sente que precisa ceder aos filtros do mercado?

Nenê Altro: A irreverência vence e quebra qualquer coisa. Lembro quando a Dance of Days saiu em português, a cena hardcore começou a falar que era “hardcore sertanejo”. O que eu fiz? Peguei uma foto do grupo “Amigos” e coloquei os rostos de todo mundo da Dance of Days, zoando com quem estava achando que estava abafando com o comentário [risos]. Eu vendia a flor para quem queria admirar e também a pedra para quem queria atacar.

Eu vendia a flor para quem queria admirar e também a pedra para quem queria atacar.

(Nenê Altro)

Turnê de Lírios aos Anjos passará por todo o país Mazzei

A Rejeição ao Saudosismo e a Pirataria Como Aliada

Em uma era de rápidas transformações tecnológicas, muitos artistas de sua geração se apegam ao passado. Nenê, no entanto, demonstra uma visão radicalmente oposta. Desde os tempos em que compartilhava fitas demo para criar um senso de comunidade, ela sempre viu a tecnologia como uma aliada. A chegada do MP3 e da “pirataria” não foi uma ameaça, mas uma evolução natural de sua filosofia de que a arte deve ser propagada, não aprisionada.

Musikorama: Diante de tantas mudanças na indústria da música, como você mantém vivo o interesse do público?

Nenê Altro: Quando surgiu o MP3, eu — que era dona da minha própria gravadora — fui uma das maiores defensoras da pirataria. Sempre acreditei que a arte tem que ser propagada. Essa mudança de era foi muito legal pra mim, porque não vi muita diferença em relação ao que eu já fazia com as fitas demo — só ficou mais fácil. Acho até prejudicial viver de saudosismo. Você precisa aproveitar o agora. Se fica preso ao passado, não vive o que está acontecendo com as novas tecnologias.

Acho até prejudicial viver de saudosismo, porque você tem que aproveitar e viver o momento que é o agora.

(Nenê Altro)

A Busca Espiritual e o Encontro Consigo Mesma

Antes de sua transição, Nenê travou uma batalha de décadas contra a depressão, o alcoolismo e a dependência química. Em um momento de desespero, a artista, até então ateia, iniciou uma busca por respostas que a razão não conseguia oferecer. Essa jornada a levou ao Candomblé e, posteriormente, a uma experiência transformadora com a Ayahuasca, que ela descreve como o momento em que foi forçada a encarar a si mesma sem filtros ou desculpas.

Musikorama: Como você enxerga hoje a espiritualidade? Você fez as pazes com a religião?

Nenê Altro: Eu fiz as pazes, reafirmando que não serve para mim. Quando eu estava ficando sem desculpas para aceitar minha identidade de gênero, comecei a procurar respostas no externo e acabei na religião. A gente sempre tenta primeiro culpar um agente externo pelas questões que são nossa responsabilidade encarar. Porém, o Candomblé me ajudou bastante pela reclusão. Mas a parte religiosa não deu jeito no vazio que sentia, porque o problema era eu. Em 2019, consagrei a Ayahuasca pela primeira vez. Ali, tudo mudou. A Ayahuasca é simplesmente você com você por horas, sem ter para onde correr. O resto é alegoria. Ali eu me entendi e me vi mulher. E não conseguia mais fugir daquilo.

Eu fiz as pazes [com a religião], reafirmando que não serve para mim.

(Nenê Altro)

Visual gótico marca a nova fase de Nenê Altro Mazzei

A Artista Empreendedora: Independência, Estado e a Base de Fãs

Com uma visão anarquista bem definida, Nenê Altro tem uma perspectiva aguçada sobre o papel do poder público nos investimentos da indústria musical. Crítica à seletividade que favorece grandes artistas, cita defender o trabalho artesanal de construção de comunidade como a verdadeira independência do artista — tanto do mercado quanto do Estado. É uma lição que carrega desde os tempos dos fanzines, sem depender de editais ou plataformas digitais.

Musikorama: Qual é a sua leitura, como anarquista, sobre o papel do Estado no financiamento da cultura?

Nenê Altro: Acho mais do que justa essa devolutiva: o aparelho devolver um pouco do que rouba, da mais-valia retida sobre a classe artística. O problema é a seletividade — da forma como é feita, sempre vai favorecer o monopólio. A solução está fora das redes, numa mudança de mentalidade, de se enxergar como artista fora da lógica mercadológica. A boa e velha construção de público, de base de fãs, sempre funcionou e sempre vai funcionar. Construa sua base, valorize sua base, respeite sua base. Assim você tem uma casa sustentável, livre do sistema.

A solução está fora das redes, numa mudança de posicionamento mental.

(Nenê Altro)

A Madrinha da Cena: Nutrindo as Novas Gerações

A filosofia de autossuficiência de Nenê não a torna isolada. Pelo contrário, ela sempre foi uma figura central na promoção de novas bandas. Desde as coletâneas que lançou nos anos 90 e 2000, que ajudaram a revelar nomes como Fresno e NX Zero, até hoje, ela entende que a força da cena depende do apoio mútuo. Para ela, abandonar as raízes e os novos talentos é o caminho mais rápido para a irrelevância.

Musikorama: Você continua buscando revelar novas bandas?

Nenê Altro: Ah, acho que é um trabalho contínuo, né? Porque se você não apoia a raiz, serra o próprio galho em que está sentado. Tudo faz parte de um conjunto. O erro de muitos artistas, quando se consagram, é se desvincular de onde vieram — e isso é se desvincular da própria identidade.

O Futuro é Agora: “Doña Nenê” e a Próxima História

Longe de se acomodar, Nenê Altro já está imersa em seu próximo grande projeto. Paralelo a turnê comemorativa da Dance of Days em andamento, ela dedica sua energia criativa a um novo e ambicioso álbum solo sob o nome “Doña Nenê”. O projeto promete mais uma vez quebrar barreiras, misturando suas raízes punk com ritmos latinos, em um trabalho extenso e, como sempre, narrativo. Para Nenê, a arte é um fluxo constante de evolução e renascimento.

Musikorama: O que que a gente pode esperar nos próximos dias ou meses de Nenê Altro, Dance of Days e afins?

Nenê Altro: Agora estou de cabeça na “Doña Nenê”. É um projeto que tem me encantado muito. Lógico que com toda a raiz punk sempre, mas tem cúmbia, tem rap antigo, tem electro... me permiti. Serão 32 músicas no álbum, com duas horas e meia de pancada na orelha, com narrativa, começo, meio e fim. Vou terminar a parte bruta agora e começar a preparar para lançar o álbum completo ainda neste ano. Nesse meio tempo soltarei demo singles com versões diferentes de mix e master das que estarão no álbum completo.

Para mergulhar ainda mais fundo na visão única de Nenê Altro sobre música, arte e vida, assista à entrevista completa no player abaixo. Afinal, como ela mesma diz: é preciso viver e valorizar o agora, pois é nele que construímos nossa verdadeira história.

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Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.

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