Longe dos filhos, profissionais de saúde passam Dia das Mães isoladas
"As pessoas têm medo da gente contaminar a família e os amigos", relata uma mãe, que só vê o filho a cada 20 dias
Bem Estar|Hysa Conrado, do R7

“Oi, meu filho” - diz Kelly e é possível ouvir ruídos de beijos do outro lado da linha - “depois eu te ligo”, ela encerra a ligação, interrompendo a entrevista. Kelly Almeida, de 38 anos, é fisioterapeuta e trabalha na linha de frente do combate ao novo coronavírus no Hospital Intermédica do ABC, em São Bernardo do Campo, região metropolitana de São Paulo. Desde março, quando o número de casos confirmados da covid-19 começou a disparar na capital paulista, a profissional passou a ver o filho a cada 20 dias. Heitor, de três anos, chora de saudade. “Vou trabalhar no Dia das Mães, vou passar sem filho. É muito difícil, uma depressão danada, uma solidão tamanha. Me sinto falha”, desabafa.
Os primeiros quinze dias lidando com os pacientes infectados foram os mais difíceis, lembra a fisioterapeuta. O vírus, que chegava ao país ainda cercado de indefinições, trazia duas certezas: a facilidade e rapidez do contágio. “A gente não sabia como atender o paciente, era tudo muito novo. Já fui trabalhar chorando com medo do que podia acontecer”, afirma. O primeiro impulso de Kelly foi isolar o filho da sua convivência e, desde então, ela conta com a ajuda da madrinha de Heitor, que o acolheu em casa.
Já fui trabalhar chorando
Além de lidar com a insegurança e a saudade, a fisioterapeuta conta que o pai da criança, com quem mantém guarda compartilhada, chegou a sugerir que ela não visse mais o filho. “Ele não queria deixar o Heitor ficar comigo, insinuou que eu pudesse passar o vírus para ele. As pessoas têm medo da gente contaminar a família e os amigos. Alguns me chamam de louca por eu ter contato com meu filho”, desabafa.
Se os cuidados depois de sair do plantão já são redobrados, nos dias em que pode visitar o filho, a profissional passa por uma limpeza rigorosa. Mas, apesar disso, Kelly conta que no começo chegou a pensar que não seria suficiente. “Mas eu percebi que se eu me lavasse e tomasse todas as precauções, não pegaria o vírus. Nem todo mundo tem alguém para deixar o filho, muitas mães que trabalham comigo continuam convivendo com eles e, ao chegar em casa, se limpam, deixam a roupa do lado de fora e vida que segue”.
Minha filha perguntava se podia me abraçar%2C eu dizia que não
É o que acontece na casa de Lucia Milito, de 48 anos, médica do Hospital Israelita Albert Einstein. Mãe de dois filhos, Marcos, de 18, e Marina, de 10, a geriatra passou a viver isolada dentro de casa. E, apesar de vê-los todos os dias, sente a solidão da falta do contato e do carinho em família. “Minha filha começou a chorar de desespero, perguntava se podia me abraçar e eu dizia que não. Tinha medo de já ter contraído o vírus e estar assintomática”, lembra.

No decorrer dos dias, Lucia se deu conta de que o afeto não seria negociável com a caçula. Foi quando nasceu o “carinho de álcool gel”. De máscaras e com uma boa porção do antisséptico nas mãos, mãe e filha passaram a se permitir um momento de contato para matar a saudade. “Ela queria me beijar e me abraçar, e aí no último mês a gente combinou de abraçar à noite, depois do meu banho e antes do banho dela. O beijo é no pescocinho, para não ficar perto do rosto”.
O primeiro mês de trabalho frente à covid-19 foi, para ela, também o mais intenso e preocupante. “Na primeira semana foi muito trágico, a gente via os pacientes piorando muito rápido, iam para a UTI e não saiam de lá. Depois que as altas começaram a angústia foi diminuindo, fomos aprendendo a lidar com a doença e acabamos ficando mais seguros dentro do processo”, afirma.
Mesmo assim, a médica não se permitiu afrouxar os cuidados em casa. Ao chegar do trabalho, a rotina é sempre a mesma: ela deixa os sapatos no carro, tiras as roupas e coloca no cloro, entra sem encostar em nada e vai direto para o banheiro da área de serviço, onde toma um banho de água quente antes de encontrar a família. “Mas separei todas as minhas coisas, quarto, prato, talher e até a cadeira. Para comer, me sento em um lugar a dois metros de distância deles”, conta.
No Dia das Mães, a médica estará, mais uma vez, na linha de frente do combate. A boa notícia é que vai conseguir almoçar com a família, em casa. “Normalmente passamos com minha mãe, mas esse ano não vamos porque ela é grupo de risco e tenho medo de passar algo pra ela”, conta.
Ainda que imersa no cenário da pandemia, Lucia consegue enxergar um ponto positivo. “Quando volto pra casa sinto um prazer enorme de ver todo mundo bem, de ter uma convivência. Quando estamos em uma vida de rotina, não damos valor para essas coisas”, revela.