Especialistas concluem que nem sempre o perdão é a melhor solução
Perdoar pode ser saudável, mas especialistas dizem que ninguém deve se sentir pressionadas a isso
Viva a Vida|Christina Caron, do The New York TImes
Uma das lembranças de infância mais preciosas de Amanda Gregory é uma brincadeira que fazia com os dois irmãos, a que chamavam “caça à barata”. Consistia em entrar correndo na cozinha, apagando e acendendo as luzes e tentando matar tantos insetos quanto fosse possível com os pés antes que se espalhassem.
Ela se lembra também de que nem sua mãe nem seu pai se davam ao trabalho de limpar a casa, sempre imunda – o piso grudento e encardido e os tapetes fedendo a urina de gato. E de que mal falavam com os filhos.
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Ela conta que, um dia, machucou o joelho, mas os pais pareceram ficar mais irritados do que preocupados; com o tempo, acabou aprendendo a conviver com a dor. Décadas depois, descobriu que havia lascas de osso flutuando na articulação, problema que exigiu cirurgia.
Durante a infância, nada disso lhe parecia fora do normal; foi só muito tempo depois, quando se tornou terapeuta de trauma em Chicago, que percebeu quanto a negligência física e emocional imposta pelos pais a tinha afetado. Durante o próprio processo de terapia, começou a questionar até que ponto deveria perdoá-los para progredir na recuperação.
Ela é uma entre vários especialistas, escritores e acadêmicos que começaram a questionar a sabedoria popular do “é sempre melhor perdoar” –, ao mesmo tempo redefinindo o perdão e acabando com a pressão para adotá-lo.
1. Afinal, o que é perdão?
“No geral, o perdão é entendido como a substituição do rancor pela boa vontade em relação ao causador da dor”, definiu Tyler J. VanderWeele, diretor do Programa de Desenvolvimento Humano do Instituto para Ciências Sociais Quantitativas de Harvard.
Alguns estudiosos, como Robert Enright, vão mais além, dizendo que o perdão é a opção de conceder bondade a quem lhe fez mal. “Mesmo que não seja merecido, o perdão pode gerar compaixão, generosidade e até amor em relação a quem o magoou”, escreveu ele. “Imagine dizer isso a quem passou por um trauma. Quase impossível vender essa ideia”, comentou Gregory.
Outros, como Frederic Luskin, pesquisador e diretor do Projeto do Perdão da Universidade Stanford, o encaram como um caminho rumo à renúncia da vingança, do ódio ou da mágoa sem necessariamente substituí-los por sentimentos positivos – a neutralidade basta. “O objetivo é estar em paz com a própria vida.”
Mas será verdade que, como disse Desmond Tutu, sul-africano vencedor do Prêmio Nobel da Paz, “sem perdão ou reconciliação não há futuro”? Perdoar é essencial para evitar a amargura e o ressentimento?
2. O que se ganha ao perdoar alguém?
Muito já se escreveu sobre os motivos por que o perdão é benéfico para quem o pratica. De fato, para muitas religiões é considerado uma virtude. Alguns estudos sugerem que gere benefícios para a saúde mental, ajudando a melhorar a depressão e a ansiedade; outros concluíram que reduz o estresse e melhora a saúde física e o sono. “Quase sempre o perdão é útil, mas não significa que seja sempre necessário”, afirmou o dr. VanderWeele.
A questão é abordada por Gregory no livro que escreveu, previsto para ser lançado no ano que vem, “You Don’t Need to Forgive: Trauma Recovery on Your Own Terms”. Nele, a autora define o perdão como um processo emocional, e não como objetivo final, por meio do qual a pessoa pode passar a experimentar menos emoções negativas em relação a quem a feriu.
Entretanto, ela faz questão de enfatizar que não é a mesma coisa que reconciliação, nem exige o desenvolvimento de sentimentos positivos em relação ao autor da mágoa. “Você pode perdoar a pessoa e não ter absolutamente nada a ver com ela.”
3. Ressignificando o conceito de perdão
Já em 2002, Sharon Lamb, professora de aconselhamento psicológico da Universidade de Massachusetts em Boston, contestava a ideia de que o perdão é terapêutico em longo prazo, questionando se, em alguns casos, poderia ser até prejudicial. “Quero que a pessoa sinta e explore os próprios sentimentos. Trabalhar nisso leva tempo.”
Rosenna Bakari, coach de empoderamento que sofreu abusos sexuais na infância, percebeu que exercitar o perdão, no seu caso, não foi a saída para a cura. “Na verdade, o que ajudou foi me permitir sentir raiva e rancor depois de manter silêncio durante 40 anos. Se você não sabe se consegue ou deve perdoar, comece a pensar no que deve fazer para se libertar”, ensinou a doutora em psicologia da educação.
Já Gregory afirmou que alguns de seus clientes nunca se esforçaram para perdoar e, no entanto, progrediram muito na recuperação, enquanto outros lhe dizem que perdoaram e se sentem ótimos por isso. “Acho que não precisa ser um objetivo.”
4. Quando você sabe que é hora de perdoar?
Susan Shapiro, escritora e professora de escrita criativa de Nova York, disse que, depois de brigar com seu mentor/terapeuta de longa data, passou a ser incomodada pela dúvida: como a pessoa toca a vida adiante sem receber o pedido de desculpas ou sem o desfecho de que precisa?
Para o livro que lançou em 2021, “The Forgiveness Tour”, ela entrevistou líderes religiosos e médicos, além de mais 12 pessoas, perguntando como tinham conseguido superar o mal que outros lhes causaram. (Entre elas, uma mulher cujo pastor a pressionou para perdoar o próprio pai, que a estuprou quando tinha 13 anos.) “Há meio que uma ‘indústria do perdão’, insistindo que você precisa desculpar todo mundo, mas o interessante é perceber que esse exercício pode ser autodestrutivo e muito perigoso”, comentou a autora, referindo-se aos inúmeros livros de autoajuda e palestras incentivando a prática.
No próprio caso, porém, Shapiro decidiu se reconciliar com o antigo orientador quando ele finalmente demonstrou remorso em relação ao conflito. “Foi muito libertador”, confessou.
Já o dr. Luskin diz que, independentemente da forma a que chega ao perdão, nunca é um processo imediato. “A pessoa precisa de tempo para remoer, sentir-se infeliz e sofrer.”
Embora lide com a questão há anos, Gregory ainda não perdoou o pai. Vê a mãe como produto de uma criação difícil e, embora não sejam próximas, as duas continuam fazendo terapia familiar juntas. “Às vezes, é preciso um trabalho emocional complexo antes mesmo de pensar em desculpar alguém. O perdão não é um processo linear ou lógico, mas muito caótico.”
c. 2024 The New York Times Company