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A história do churrasco no Brasil

Desde os primórdios da domesticação do fogo até as técnicas do churrasco gaúcho, esse preparo de carne conta a história da humanidade, marcada por influências indígenas, coloniais e regionais

Aprendiz de Cozinheira|Rafael Afonso Gonçalves

Picanha, no Rincon Escondido (Aline Sordili/R7)

Desde que “domesticaram” o fogo, o que aconteceu há pelo menos 400 mil anos, nossos ancestrais humanos assam carne a partir da sua exposição a essa fonte de calor. E essa não era única sua única utilidade: o fogo servia também para aquecer, iluminar, espantar inimigos ou demarcar territórios. Seu uso culinário, no entanto, foi fundamental para o desenvolvimento de nossa espécie.

E ao longo do desenvolvimento e espalhamento da espécie humana para os diferentes cantos do mundo, muitas técnicas de assar carnes surgiram, dando origem a múltiplas expressões culinárias. O que pode ser considerado comum a essas formas de preparo, e que as aparenta ao nosso conhecido churrasco, é o ato de expor peças de carne ao calor do fogo sem o intermédio de outros elementos, como o barro de uma panela, o ferro de uma chapa ou de outras formas de mediação, como a água ou até mesmo pedras. Aprenda os segredos do churrasco perfeito aqui no Aprendiz de Cozinheira.

As diversas comunidades que habitaram o território que veio a se tornar o Brasil também desenvolveram técnicas apuradas de manuseio do fogo para a preparação de diferentes tipos de caça, como de peixes, aves e mamíferos.

A mais conhecida dessas técnicas é a do moquém, que foi registrada por viajantes e colonizadores portugueses, já logo após o início da invasão e ocupação dessas terras — apontando para a antiguidade desses saberes. A técnica do “moqueado” está baseada no moquém, isto é, do uso de uma grelha feita de madeira ou outros materiais fibrosos erguidos paralelamente a uma fogueira, ou a sua brasa.

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Sobre essa grelha, coloca-se carne, geralmente de peixe, mas também de outros animais para serem assados e secos. Como aponta o célebre Luís da Câmara Cascudo, autor de um dos mais importantes livros sobre história da alimentação no Brasil, o moquém constitui-se antes de tudo como uma forma de conservação das carnes — resultante do processo de desidratação pelo calor —, para além de ser uma forma de preparo. De todo modo, como o mesmo Câmara Cascudo afirma, pode-se considerar o moquém como o “avô do churrasco”.

O churrasco, tal como o entendemos hoje, está ligado à introdução do gado vacum nessas terras, o que acontece já nos primeiros tempos da colonização. Aliás, a grande maioria da proteína consumida hoje no Brasil vem de animais que não são nativos, importados para cá durante a colonização, como os porcos, as galinhas e as vacas.

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Os primeiros bovinos desembarcaram por aqui juntamente com outros animais domésticos, trazidos pela expedição de Martin Alfonso de Souza, datada de 1533, que fundou a capitania de São Vicente. Apesar de sua importância para o início da disseminação dessas espécies, não parecem ter sido esses os animais responsáveis pela multiplicação dos bovinos no Brasil, o que teria acontecido nas regiões mais a sul.

Existem diferentes hipóteses sobre qual o grupo de animais deu início da disseminação de bois e vacas nessas terras, sendo a mais aceita aquela que prega que não teriam sido os portugueses, mas, sim, os padres jesuítas espanhóis os responsáveis por esse espalhamento, ou, pelo menos, um de seus principais responsáveis.

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Isso porque teriam sido os rebanhos criados por eles os que se espalharam pelas vastas regiões dos pampas. Esses religiosos espanhóis foram os principais responsáveis por aldear os indígenas em uma região que se estender dos atuais centro-oeste do Paraná até boa parte oeste do Rio Grande do Sul.

Essa ocupação, feita pelos padres jesuítas espanhóis, tinha avançado na direção oeste-leste, especialmente durante a chamada União Ibérica, entre 1580 e 1640, quando Portugal e Espanha se tornaram possessão de uma mesma Coroa, a espanhola.

Por pertencerem a um mesmo domínio, as fronteiras entre os territórios, antes, portugueses e espanhóis, se misturaram, dando origem a diversas disputas e tentativas de apropriação. Os bandeirantes paulistas foram um dos grupos que disputaram a prevalência dessas terras que, vale lembrar, já eram povoadas por indígenas há muito tempo.

Nas buscas, justamente, por indígenas, que eram em seguida escravizados e vendidos para trabalharem nas plantações de cana-de-açúcar de outras regiões da colônia, esses bandeirantes atacaram por diversas vezes vários desses aldeamentos jesuítas, capturando os indígenas ali aldeados (na perspectiva deles, já “amansados”), empurrando os jesuítas espanhóis em direção ao oeste, para além da margem do rio Uruguai.

Esse conflito se tornou mais agudo com o fim da União das Coroas e a Restauração da monarquia Portuguesa, em 1640. Para garantir a posse das terras para os portugueses, em particular, para a Capitania de São Vicente (posteriormente, de São Paulo), as bandeiras começaram a avançar cada vez mais ao sul, para desarticular os aldeamentos jesuítas espanhóis e, ainda, garantir a mão-de-obra escravizada que lhes rendia tantos lucros.

Essas bandeiras, desse modo, foram responsáveis por desestruturar várias comunidades mantidas nas porções mais ao sul, para onde os padres jesuítas espanhóis tinham conduzido rebanhos de gado vacum para sua manutenção. Com a destruição dessas cidades e aldeamentos, o gado acabou se espalhando pela região, onde encontrou um ambiente propício para sua multiplicação. Os pampas, bioma que cobre uma boa parte do que é hoje o Rio Grande do Sul, oferecia alimentação rica e abundante, ambiente favorável para sua manutenção, além de poucos predadores.

Assim, um gado “selvagem” — conhecido como Orelhano ou Franqueiro, com grandes cornos — passou a ocupar grande parte daquelas terras e, também, a compor a alimentação de indígenas e comunidades caboclas que surgiam na região.

E não de todas as formas, prevalecendo a assada. Para além da alimentação, também eram extraídos o couro e o sebo, que tinha outras muitas utilidades. Entre essas formas de assar as carnes bovinas, desenvolveram-se as formas de acender fogo em buracos cavados no chão — os ancestrais da técnica que chamamos de “fogo do chão”, assim como o modo de expor as carnes ao calor em espetos presos ao solo e inclinados em direção ao fogo. Registros já no século XIX descrevem essa técnica pela qual o churrasco gaúcho e as “parrilladas” são conhecidas.

Enfiou-a à guisa de espeto em um dos pedaços de carne, atravessando-a por outros pedaços transversalmente, para estender bem a carne; enfiou o espeto obliquamente no solo expondo ao fogo um dos lados da carne e, quando o julgou suficientemente assado, expôs o outro lado

O viajante francês, Auguste de Saint-Hilaire, retratou essa forma de assar a carne quando passou pelo Rio Grande do Sul, em 1821. Ele diz: “Logo chegado ao lugar onde pousei, meu soldado fez uma grande fogueira; cortou a carne em compridos pedaços de espessura de um dedo, fez ponta com uma cara de cerca de 2 pés de comprimento e enfiou-a à guisa de espeto em um dos pedaços de carne, atravessando-a por outros pedaços transversalmente, para estender bem a carne; enfiou o espeto obliquamente no solo expondo ao fogo um dos lados da carne e, quando o julgou suficientemente assado, expôs o outro lado. Ao fim de um quarto de hora, esse assado, podia ser comido, parecendo uma espécie de beefsteak suculento, porém de extrema dureza”.

Ao longo dos séculos XIX e XX, essas técnicas foram apuradas, e ao contrário da “dureza” identificada por Saint-Hilaire, as carnes assadas pelas técnicas gaúchas passaram a ser conhecidas por sua suculência e sabor. O churrasco, sobretudo o de gado vacum, passou a significar prosperidade e de reunião familiar, não só nas regiões do sul, mas em várias regiões do Brasil.

Para que isso acontecesse, outros fatores e agentes concorreram, certamente. Um tipo de preparo tão importante para a alimentação dos brasileiros, carrega muitos ingredientes de sua história, técnicas e hábitos das comunidades nativas, conflitos, violências, uma forte influência dos colonizadores e a biodiversidade por eles conhecidas, a importância de um de nossos biomas, misturas e confluências de diferentes culturas, enfim, carrega uma rica e humana história.

Rafael Afonso Gonçalves é membro e fundador do Comer História, projeto de História Pública e divulgação científica em História da alimentação, e professor do Departamento de História da UNICENTRO (Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná).

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