Willy Wonka e o chocolate de trabalho escravo
Como seria o fantástico fabricante de chocolate se ele vivesse no Brasil ou na África? De quem ele compraria a preciosa matéria prima para fazer seu famoso produto? A mão de obra das lavouras seria escrava?
É de comer|Camé Moraes para o R7
Excêntrico e mágico, o personagem Willy Wonka, criado pelo britânico Roald Dahl, volta às telas de cinema com uma missão: implantar a fantástica fábrica de chocolate numa sociedade contaminada por um cartel de lojas de empresários do ramo. Segundo o trailer divulgado essa semana, ele vai lutar contra essa sociedade que oprime quem tenta entrar no negócio e vender um produto novo, inventivo.
O filme, que tem data de estreia para 14 de dezembro, é estrelado por Timothée Chalamet, no papel do jovem Wonka. A jornada do herói parece ter sido construída em cima de questões sociais bastante discutidas nos últimos tempos: livre-mercado, livre concorrência e geração de prosperidade para a comunidade local – quase uma incorporação do ESG à trama criada na década de sessenta. Não entra na discussão, no entanto, o ciclo de exploração de mão de obra degradante e infantil tão presente nessa cadeia produtiva.
Ok, podem me chamar de chata. Mas façamos um exercício. Quem seria Willie Wonka se ele morasse hoje no Brasil ou nos países que mais produzem cacau no mundo (Costa do Marfim, Gana, Indonésia e Camarões, por exemplo)? De quem o jovem inglês compraria o precioso fruto para produzir suas cachoeiras de chocolate ao leite? De qual mão de obra estamos falando?
Ao contrário da fantasia, o chocolate não é produzido por pequenos homenzinhos de cabelo verde, os Umpa lumpas (nessa nova versão interpretado pelo ator Hugh Grant).
A realidade, na produção de cacau no Brasil e na África tem pequenas pessoas nas lavouras, e quando digo pequenas, me refiro às crianças. Tem também muita, mas muita gente grande trabalhando em situação degradante. A questão é tão flagrante que a gigante Nestlé se viu obrigada a criar em 2020 um programa voltado para combater o trabalho infantil entre famílias carentes.
Confesso aqui estar usando o pretexto do filme hollywoodiano para lembrar nesse espaço que a indústria do chocolate está longe de ser mágica e bonita.
Nosso país, que já foi uma potência nessa área, hoje ocupa a 7ª posição mundial em produção do fruto, com 270 mil toneladas anuais. Os estados do Pará e da Bahia têm 95% da fatia produtora. No estado do nordeste, foram flagradas situações inaceitáveis, descritas em relatório de 2020 da ONG Repórter Brasil.
Em setembro de 2017, uma fiscalização do governo federal resgatou nove lavradores do trabalho escravo em Uruçuca (BA). “Segundo os fiscais, os trabalhadores se encontravam em situação de trabalho degradante devido às péssimas condições de higiene nos alojamentos e moradias. Precárias, as habitações não tinham sequer banheiro. Os lavradores eram obrigados a fazer as necessidades fisiológicas ao relento, e a tomar banho numa lagoa de água parada e turva. Além disso, a água para cozinhar era retirada de uma cacimba com peixes e girinos.” - descreve o relatório. Duas gigantes multinacionais figuravam entre os compradores desse cacau.
Em 2018, outra fiscalização detectou problemas graves em Ilhéus - BA. “Os lavradores não tinham acesso a equipamentos de proteção – inclusive para a aplicação de agrotóxicos – e as condições sanitárias foram qualificadas como “indignas” pela fiscalização. Também haviam estabelecido contratos de parceria, recebendo metade da produção. Não eram, no entanto, livres para vender o cacau a quem quisessem. Tinham que fazê-lo com um atravessador indicado pelo dono da fazenda.” – aponta o estudo.
A íntegra está neste link.
Tudo isso pra dizer que o cartel dos lojistas de chocolate destacado no novo trailer de Wonka está longe de ser o principal problema envolvendo esse universo do cacau. Antes de virar barras, confeitos ou nibs, o chocolate tem um processo longo, pouco transparente e cercado de terceirizações que facilitam casos de trabalho escravo.
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