'Ter um câncer sem cura me trouxe coragem'
A notícia de ter um câncer de mama incurável é como um salto em queda livre. Mas Manu aprendeu a ser pássaro
Papo de Paciente|Marcela Varasquim e Marcela Varasquim
“Você tomaria um café no céu comigo?” Emanuelle pergunta ao marido, enquanto observa São Paulo cinza pela janela.
Jocel fica preocupado com o convite. Mesmo tendo um câncer incurável, a esposa nunca havia desistido de seguir a vida da melhor maneira possível. Raramente ela pensava na morte — preferia confiar no resultado positivo dos tratamentos e andar sorrindo, mesmo nos dias de chuva. Ele a conforta com um abraço silencioso. Mas dentro da mente martela um pensamento duro: o que poderia ter causado um pessimismo repentino na esposa?
No coração de Manu, nada havia mudado. Ela continuava abraçada ao lado bom da vida, como nos primeiros dias. Mas percebe que o marido havia interpretado a pergunta como um pedido de socorro, e ri para si mesma, sem chamar atenção.
Ao contrário do que Jocel imaginava, a frase não era um convite para um café após a morte, e sim para uma aventura que, anos atrás, seria inimaginável. Manu sugere que os dois troquem de roupa para sair. Ele, aflito com a suposta recaída emocional da esposa, obedece ao pedido, para vê-la forte, com os pés firmes no chão. Mas ela sabe muito bem que será mais um dia para aprender a voar.
Dominar a queda livre
Manu tinha receio de estar próxima das nuvens. Bastava subir em algum lugar alto, e a vista já embaçava, o coração acelerava, e a fuga era consequência. Mas a vida, que adora zombar dos nossos nãos, por pelo menos duas vezes empurrou Manu de um arranha-céu, sem aviso de atar cintos.
A primeira delas foi em 2018, quando, desconfiada de algumas alterações na mama, procurou um médico. Descobriu um câncer em estágio inicial, fez cirurgias, radioterapia e bloqueio hormonal. Três anos depois, quando todos os ferimentos dessa queda já haviam sido cicatrizados, Manu é novamente colocada cara a cara com o medo: um dos exames de acompanhamento mostrou resultados alterados, e ela precisou fazer uma investigação mais detalhada. Foi como ser lançada da janela de um avião sem paraquedas.
Havia apenas dois caminhos: despencar até tocar o chão ou aprender a ganhar estabilidade em queda livre. O segundo era certamente o mais difícil, mas o único que evitaria a morte em vida. Ser emocionalmente forte é para todos, mas não são todos que topam enfrentar a aridez do caminho. Manu guardou as pedras no bolso, atirou outras tantas para longe, e quando os pés já não suportavam mais a dor, descansou no abraço da paciência, que a esperava com um sorriso aberto.
Dezesseis dias depois, ela recebeu a confirmação de que o câncer havia se espalhado para o fígado. Mas ela já estava grande o suficiente para não se espremer nas gaiolas estreitas do medo.
O voo
Nos meses seguintes, cada laudo trazia uma nova queda: a doença chegou ao sacrolombar, foi para o osso esterno e, por último, atingiu o acetábulo — ligação do fêmur com o quadril. A vida gritou que um dia acaba, mas Manu jamais aceitaria acabar com ela antes do tempo.
A cada nova metástase, mais uma chance de perceber que estar aqui é um acontecimento que não pode ser deixado para depois. Foi assim que ela conseguiu, em alguns meses, realizar sonhos que muita gente posterga por anos, como se viver fosse para sempre.
Sonhos não precisam de uma casa com piscina na Europa, nem de festas luxuosas. Não que tudo isso seja ruim. Mas quem acredita que seja esse o ápice da vida ainda não viu de perto a morte. Conversar alguns minutos com a morte é suficiente para entender que a paisagem mais bonita fica cinza se o coração está machucado. E se o coração está grato, de um solo nada fértil pode nascer uma flor.
Manu aprendeu que não é eterna, e por isso percorreu 140 km apenas para praticar esgrima — um esporte que sonhava em conhecer. Além disso, desacelerou o uso das redes sociais, passou a domar o tempo, estabelecer limites, ser fiel a si. E, principalmente, dizer ao medo quem manda.
Manu e Jocel chegam ao local escolhido por ela, acomodam-se nas poltronas e apertam os cintos. A essa altura, ele já havia desvendado o que, de fato, significava o convite para tomar café no céu, e sorri aliviado. Manu havia preparado mais uma das suas surpresas, e, desta vez, incluía café da manhã em um restaurante suspenso.
A estrutura começa a subir, subir, até tornar tudo lá embaixo pequenininho. O começo assusta, mas o meio fica mais leve. Quando ela abre os olhos, sente o coração desacelerar e o medo diminuir, junto aos prédios.
Lá do alto, até arrisca girar a poltrona! Mais uma vez Manu vence — não uma competição, nem uma corrida, mas a si mesma. O próximo item da lista de sonhos é pular de paraquedas. Nada tão difícil para quem cria asas em queda livre, e ainda aprendeu a pegar carona com o vento.
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