Trabalho Escravo em Bento Gonçalves Surpreende o Vinho Brasileiro
Em diligência feita pela PRF, PF e MTE, 207 trabalhadores são resgatados em condições análogas ao trabalho escravo.
Adega do Déco|Do R7 e André Rossi
ANTES DE COMEÇAR O TEXTO, ALGO IMPORTANTE: REFORÇO AQUI, COMO AUTOR DESTE TEXTO, QUE NÃO TENHO QUALQUER VÍNCULO COM NENHUMA EMPRESA CITADA. O OBJETIVO DO TEXTO É COLOCAR OS FATOS, DE AMBOS OS LADOS, PARA QUE CADA UM CHEGUE ÀS SUAS CONCLUSÕES.
Na semana passada, várias notícias sobre um mesmo tema abalaram o mundo do vinho. Uma operação da Polícia Rodoviária Federal, Polícia Federal e Ministério do Trabalho identificou casos de trabalho análogo à escravidão na região de Bento Gonçalves (RS), justamente na época da colheita das uvas para esta safra de 2023. A primeira notícia que saiu, do importante jornal gaúcho Zero Hora, falava em uma “fiscalização na regularidade de contratação de pessoas que atuavam na colheita da uva e abate de frangos”. Os investigadores foram até uma pousada no bairro Borgo, onde estavam os trabalhadores e isso se deu por conta de uma denúncia de um grupo que supostamente teria fugido deste local e feito uma denúncia. Segundo esta denúncia, este grupo teria sido cooptado por aliciadores de mão de obra na Bahia e trazidos para uma empresas terceirizadas (posteriormente identificadas como Fênix Serviços de Apoio e também Oliveira & Santana) que fornece mão de obra a algumas vinícolas e cooperativas da região. Os relatos diziam que trabalhavam das 5 da manhã às 8 da noite, com folgas aos sábados e que a comida oferecida pela empresa contratante era estragada, que não poderiam sair daquele local e que suas famílias eram constantemente ameaçadas. Ou seja, condições precárias e inaceitáveis para qualquer ser humano, seja trabalhando para a empresa que for! O responsável pelas empresas foi preso e depois liberado mediante pagamento de fiança de 39.060,00.
Em entrevista coletiva concedida pelos órgãos acima no último sábado, o auditor fiscal Rafael Zan esclareceu que os principais problemas ocorreram no alojamento onde 207 trabalhadores, sendo 198 que vieram da Bahia. As condições de higiene de alimentação eram precárias e ainda há relatos de agressões e uso de spray de pimenta no local.
Conversei pessoalmente hoje cedo com a Diretoria da Vinícola Salton, para esclarecer alguns pontos e ouvir também uma parte diretamente envolvida, já que os trabalhadores prestavam serviço a uma empresa terceirizada e contratada por eles. O primeiro fato que deve ser considerado é que os funcionários não eram empregados ou registrados da Salton e sim da empresa de serviços Fênix e que o resgate e investigação dos trabalhadores não foi feito nas dependências ou nos vinhedos da Salton, até porque a empresa não possui vinhedos na região onde foi feita a diligência. Estes trabalhadores foram contratados para descarregar os caminhões e não para trabalhar nos vinhedos e que durante a jornada de trabalho, todos os direitos deles eram cumpridos integralmente. De acordo com eles, a Salton promoveu a averiguação técnica para cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço, respeitou a integralidade das melhores práticas trabalhistas junto a estes trabalhadores e, além disso, possui uma estrutura de RH com ouvidoria e canal de denúncia aberto, garantindo o anonimato a funcionários e prestadores de serviço. Por último, ela comenta que a empresa tomará todas as medidas cabíveis, se preciso com austeridade, com seriedade e respeito aos seres humanos, não apenas para coibir acontecimentos futuros como para apurar os fatos de forma transparente.
Notícias publicadas hoje pelo jornal Zero Hora dão conta que o buraco pode ser maior, pois policiais estão sendo investigados, acusados de acobertarem e até se envolverem em coações a trabalhadores submetidos a trabalho análogo à escravidão na colheita da uva. Em um dos depoismentos, feito por um trabalhador de 23 anos (que também fugiu do alojamento), ele dá nome aos supostos policiais e diz que três trabalhadores foram agredidos por seguranças do alojamento porque reclamaram das condições. O suposto PM, que era identificado pelos trabalhadores do local como "sargento", teria dito que "quem reclamasse ou filmasse as condições da pousada seria morto". De acordo com o depoimento do safrista resgatado pela PF, outros que reclamaram já teriam sido assassinados.
Considerando tudo isso, minha opinião é que os fatos devem ser bem apurados e os responsáveis, punidos exemplarmente. Acho sim que como contratantes, Aurora, Salton e Garibaldi, importantes vinícolas no cenário nacional, poderiam exigir comprovações de que os funcionários da Fênix tinham todas as condições de trabalho que merecem e tem direito. Faltou isso a eles, mas talvez não tenham feito por nunca terem tido algum problema ou denúncia grave como esta e por confiarem nas empresas terceirizadas. Mas se deram mal desta vez, afinal, após o período de trabalho, não deviam imaginar as condições que estes trabalhadores eram postos. Mas pra mim, os responsáveis diretos são sim as empresas que contrataram estes trabalhadores, provavelmente pagando pouco e com condições precárias, lembrando que não só para vinícolas eles trabalhavam, mas também para outros setores da economia, como o abate de frangos por exemplo. Estes precisam ser punidos com todo o rigor que a lei exige (e sabemos que muitas vezes não é cumprida). Mas o buraco é mais em baixo e não é restrito ao mundo do vinho, afinal, podemos lembrar de trabalhos escravos em plantações de cana de açúcar, inclusive trabalho infantil, que levou à prisão do “Rei da Cachaça” em Minas Gerais no ano de 2014. E pesquisando um pouco mais sobre o assunto, também em 2014 o Cana Rural publicou um estudo que dizia que existem mais de 600 infratores na “Lista Suja” do Ministério do Trabalho, sendo a pecuária o segmento com mais infratores (40%), seguida da indústria florestal, agricultura e construção.
Este caso em Bento Gonçalves é só a ponta do Iceberg de um mundo tenebroso e tomara sim, que ele sirva para abrir os olhos de todos que em pleno 2023 isso não é minimamente aceitável, sendo vergonhoso ter que dedicar uma matéria que deveria ser sobre algo agradável, para um assunto tão deprimente e triste.
O mundo do vinho ganha uma mancha triste em sua história, com tantos esforços que temos em comunicar o vinho de uma forma melhor, mais próxima do consumidor. O vinho, que é usado para comemorar vitórias e momentos felizes, agora passa por uma situação triste. Mas antes de aplicarmos a tão difundida cultura do cancelamento contra estas empresas, coloquemos todos os fatos na balança, pesquisemos fontes diferentes, para então formarmos nossa opinião diante de fatos concretos e não precipitados.
Fica também a nossa reflexão sobre o que podemos fazer para que este tipo de caso não aconteça mais, assim como os vinhos de contrabando e descaminho que eu tanto falo. No caso do contrabando e descaminho, sabemos já que olhar o contra-rótulo é essencial para ver se o vinho foi importado corretamente ou não. No caso dos vinhos nacionais, talvez exigir certificações que comprovem seus trabalhos com responsabilidade social através de certificações oficiais. Sim, o vinho exige muita reflexão...
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