Descobertas de uma visão embaçada
Até onde sei|Eugenio Goussinsky
Olhou-se no espelho e viu uma imagem embaçada. Nem dava para saber se era o menino de pele lisa e sorriso claro ou o homem, já com as olheiras de cansaço e a barba por fazer. Sentiu um incômodo que se intrometia em suas pálpebras.
Foi pelo corredor do apê e tudo se mantinha enevoado. O lustre da sala, o imenso plasma da TV nova. Até mesmo a paisagem composta de céu e prédios que explodia pela janela da varanda tinha contornos incertos.
As distorções da sua vista iam repercutindo dentro dele. Chegou-lhe ambígua a lembrança do olhar da sua mãe quando ela ia buscá-lo; de como eram as pintinhas da irmã na terceira série; da fisionomia de seu pai no seu bar-mitzvá; do rosto daquela garota; dos diálogos com seus amigos...
O passado polvilhou em sua mente imagens reais, porém indefinidas, como se lhe apresentasse um lindo quadro impressionista.
Foi ao quarto da esposa, que dormia placidamente. Observou seu perfil e dele veio o retrato de alguém que também transita entre papeis, emanando uma imagem que em sua mente misturava a amiga, a namorada, a mãe...
Depois se dirigiu até o dormitório do mais velho, que dormia ao lado do celular. Naquele semblante observou, com novas nuances de mistura, o futuro se entrelaçando ao passado recente.
Assustou-se com a adolescência repentina, com a transformação da voz monossilábica, com as poucas palavras que expressavam muito, com certas lacunas da infância a serem preenchidas pelo próprio rapaz, para resultarem no amadurecimento e nas vitórias.
Meio cambaleante, seguiu até o final corredor. Aproximou-se da cama do caçula. Ele se espalhava pelo colchão, esparramando a doçura de seu rosto, refletindo sonhos, o descanso das travessuras, o agito do desejo por tudo.
Ainda de forma indistinta, viu na criança a autoestima se confundir com as dúvidas e se reencontrar no ar sorridente transmitido pelo sono tranquilo. Era um sinal da conciliação interior, diante do que se apresenta tão indecifrável na vida e, como menino corajoso, ele estava aprendendo a encarar.
Olhou novamente pela janela. Sentiu vindo de fora um recado da brisa, acariciando tudo que ele construíra.
As imagens se multiplicavam ainda mais confusas: a prateleira, os brinquedos, as figuras do quadro, o seu passado e o seu presente. O que era, afinal, o tempo?
Estas emoções, juntas, desembocavam em sua visão mareada. Serviram para umedecer seus olhos.
A vista escorregava, desalinhada. Mas contrastava com uma certeza, a iluminar aquelas imagens turvas. A de que ele, precisamente, queria estar ali.
E suas lágrimas emergiram tão puras naquela noite que, no dia seguinte, ele estava curado da conjuntivite.
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