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Se eu fosse eu

Maria Colasanti: a mulher que fez Clarice Lispector falar

Marina Colasanti nos deixa nesta terça-feira (28), aos 87 anos. Colecionadora de prêmios e com mais de 70 livros publicados, tinha ainda um outro talento: foi uma das poucas que fizeram Clarice Lispector se revelar

Se eu fosse eu|Renata ChiarantanoOpens in new window

Marina Colasanti na redação do Jornal do Brasil, a primeira mulher copidesque Reprodução

Os olhos esverdeados e o sorriso de menina irradiavam a redação do Jornal do Brasil. Era década de 70, bicho, do amor livre, da ditadura escancarada, de atos institucionais que ganhavam números e redações que sobreviviam. Estilosa e séria, desconcertante sem deixar de ser doce, Marina, a primeira mulher copidesque de uma redação, logo se destacou.

Namoradinha de Millôr Fernandes, foi convencida por ele e Yllen Kerr a escrever para o Segundo Caderno do jornal mais influente do país. Ali, fez de tudo... Pauteira, repórter, ilustradora, chefe de redação.

O talento ficou evidente nas crônicas e a aproximou de Clarice Lispector, que também escrevia para o jornal. Clarice só falava ao telefone com Marina. “Eu tinha paciência”, revelou em entrevistas.

A impaciente Clarice exigia zelo às crônicas da coluna semanal, enviadas num envelope. Eram únicas, sem cópias. Clarice não se entendia com o papel carbono. Marina monitorava todo esse processo de risco.


“O carbono frannnnzzze!”, dizia Clarice, com a língua presa carregada de medo de que o material se perdesse. A amizade entre as duas nasceu do carbono franzido e das palavras.

Já casada com o também jornalista Affonso Romano de Sant’anna, Marina gostava de reunir amigos em casa. Discreta e tímida, Clarice comentou com Nélida Piñon, amiga em comum, a vontade de ser convidada para um desses jantares na casa de Marina e Affonso.


Marina Colasanti e Clarice Lispector em foto de 1963 Acervo de Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant'anna

O jantar

“Nunca pensei que ela pudesse querer jantar na minha casa”, disse Marina, que um dia até já havia pedido um autógrafo para Clarice. “Mas Clarice janta muito cedo, às seis e meia”, avisou Nélida.

Mãos à obra, tudo preparado para o jantar. Convidados escolhidos a dedo à espera de Clarice Lispector, antes das seis e meia. Nélida e Clarice chegam logo depois.


“Clarice estava linda, com um sobretudo zebrado... Eu a elogiei, ela estava risonha e franca”, relembrou Marina. Tímida, agora ousada, Clarice senta no sofá do apartamento. Em poucos minutos, chama Marina. “Estou com uma tremenda dor de cabeça. Quero ir pra casa.”

E assim Clarice Lispector, a convidada ilustre de Marina Colasanti, vai embora nada risonha, nem franca. “Eu sabia que não era dor de cabeça, as expectativas dela não foram alcançadas... Ela não conseguiu a leveza”, revelou Marina, compreensiva.

Esse é um dos depoimentos que estão no livro Com Clarice. Escrito em três partes, por Marina e Affonso, é uma linda homenagem à escritora.

A amizade de Clarice, Marina e Affonso não se abalou pelo jantar que nunca houve. Ao contrário. Ficaram tão próximos, a ponto de o casal atravessar o Rio de Janeiro muitas vezes para levar Clarice à cartomante no Méier.

Lado a lado, Marina e Affonso relembraram esses episódios inesquecíveis no filme A Descoberta do Mundo, de Taciana Oliveira. No documentário que homenageia Clarice Lispector, Marina diz com saudade de quando a conheceu por intermédio de outro jornalista.

“Eu era uma jovem jornalista e um companheiro de redação me disse: ‘vou te levar à casa de Clarice’. Uma emoção pra mim, imagine, a casa de Clarice, que eu lia quando adolescente na revista Senhor...”

Quando viu Clarice, Marina ficou impressionada com as mãos e as pulseiras que a escritora usava: “Só uma mulher que sabe da beleza das suas mãos e dos seus gestos usava pulseiras iguais”.

A entrevista

Admiração mútua. De mulher pra mulher, Marina. A loira de olhos verdes felinos fez Clarice desabrochar numa das raras entrevistas registradas da escritora. Exímia entrevistadora, mas avessa a conceder entrevistas, Clarice aceitou fazer revelações ao casal escritor, Marina e Affonso, no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, naquela tarde chuvosa de 20 de outubro de 1976.

Clarice gargalhou, pediu Coca-Cola, ficou séria, ameaçou se emocionar, desabafou. Suave e incisiva, Marina não entrevistou Clarice. Foi um bate-papo com a amiga furona do jantar. Um incomensurável e intransponível registro de quase duas horas, que fica pra sempre nas nossas memórias. Revelações de duas mulheres à frente de seu tempo. Guiadas pela magia e a força da natureza.

De felina para felina, Marina: “Você se sente algum animal determinado, Clarice?”

“Os outros me achavam com olhos de tigre, de pantera...” - Clarice

“As pessoas devem achar que você é felina por causa dos olhos. Mas não é não. É porque você tem um comportamento interno e uma observação constante, que é dos felinos”. - Marina

“Eu concordo”. – Clarice

Uma felina entendeu a outra.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.

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