Conversa a sós
Até onde sei|Octavio Tostes
4h30. 15 minutos antes do despertador. Friaca. Vou ou não? … Tudo pelo surfe. Pulo da cama como se subisse na prancha, mãos sob os ombros… salto!
Este silêncio do café da manhã de quem mora sozinho é oração. Quando os passarinhos, mas eles estão dormindo.
A loja da Hering! Então não fechou? Era reforma. Menos uma perda, contar pra Marina, comemorar com uma camiseta nova, amarela como no poema do Maiakóvski.
Esse Sol na janela do carro. Disco de Apolo rosa incandescente. Mas à esquerda? Sim. São Paulo-Santos, no rumo Sul o Nascente fica do lado de cá.
Coração sempre se altera quando avisto o mar. Hoje tá alinhado, acertei. Tomara que dona Alba, sorriso evangélico, esteja no posto para guardar a chave.
Uma tipo aquela, digo quando dava para ter ido na onda que perdi. Ou...na detrás, quando a da frente não tem força para levar ao céu meus 100 quilos. Uma, na outra, as frases estouram, devaneio.
Nessa! Remo, remo, olho pra trás, a onda chia um sussurro e a prancha zarpa. Subo e quê isso? O bico roça a espuma da marola contemplo deslizando sorrio os olhos.
Pra raro nirvana, quantas embicadas, sustos, vacas, pancadas? O tanto de medo confrontado neguim nem imagina.
Surfe é rito. Antes, durante, depois. Lavar a prancha no chuveirinho, secar, enfiar na capa, amarrar no rack, fotografar no rosto o resumo da ópera. Essas mensagens nos selfies pra Marina rascunham o diário da jornada. Agora a serra.
Serra do Mar, “A Muralha” da TV. A rodovia Imigrantes escala o maciço.
Menino na fazenda a serra divisada da varanda era azul. Queria ver o mundo além dela. Transpus, corri paisagens, me fiz.
Jornalista, quarto e sala, carro popular, prancha sob medida, uma moto seminova, outra vintage; três centenas de livros, uns presentes de amigos, outros autografados; o rosto enfim emagrecido queimado de sol o ano inteiro; intactos, apenas amadurecidos, os ideais dos vinte anos: igualdade, paz e liberdade; antigos, porque recônditos, uns sonhos começando a se realizar.
Na curva dos 60 anos, dois de surfe, um garoto, dizem, viver do quê aos 70, 80...? Aposentadoria pública e privada juntas mal pagam as contas, fora plano de saúde. A realidade não autoriza supor muito mais tempo nas redações onde sobrevivi nas últimas quatro décadas, quase.
No surfe o essencial é antever se a onda vai quebrar pra esquerda ou direita. Quando o esperado seria se recolher, me atrevo a três caminhos. Assusta, decerto. Mas não há alternativa, e quero crer que será ótimo. O túnel, checo os faróis.
Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.