ISSO VAI PASSAR
Até onde sei|Carmen Farão
Um bip. Não mais que meio segundo e agudo no computador atravessou tímpano a tímpano. Apertou os olhos e antes que pudesse maldizer a tecnologia, algo aconteceu. Exaspero: “Isso vai passar”.
Nada mais tomava seus pensamentos a não ser: “isso vai passar”. O que é bom, vai passar. As pessoas vão passar, a felicidade vai passar, a dor vai passar. “isso” vai passar. Desorientou-se por alguns instantes. Revelação. Tudo, absolutamente “tudo isso” vai passar.
Por sobre o monitor, via da baia que lhe cabia no escritório: Jota segurava um copo de café ao lado da máquina e sorria para Érre que esperava seu copo encher enquanto terminava uma frase bem-humorada. Talvez estivessem fazendo piadas sobre Dáblio. Jota e Érre iam passar. Dáblio, o café e a máquina também. O olhar aflito agora na sala envidraçada do Sup ao telefone. Eme tinha acabado de entrar com papéis e pastas para Sup assinar. Deixou as pastas sobre a mesa e saiu da sala com um bufo que lhe encheram as bochechas como sempre exageradas de blush. O Sup, Eme, as pastas, o telefone e as bochechas coradas iam passar. Jota e Érre gargalharam. Dáblio estava logo à frente, na máquina de xerox com o rosto quase tão vermelho quanto as bochechas de Eme. Olhar fixo na bandeja que cuspia papéis quase que com a mesma força que Dáblio apertava as laterais do equipamento incomodado com Jota e Érre.
Acreditava até então que o mundo dava voltas, cheio de altos e baixos, esquinas e quebradas. Mas, na verdade, era tudo que passava. Toda e qualquer situação, independentemente do tempo de duração, das montanhas da Rússia ou influência, passava. Mortais, pensava. Somos todos mortais. Vivos. Estamos todos vivos. E daí? A vida e seu recheio. “Isso vai passar”
Seus olhos apressados correndo por toda a sala capturavam situações que invariavelmente iam passar. Angustiou-se. Nada ficaria, nada. Cê continuava compenetrada com sua pilha de papéis milimetricamente ajustados em pilha. Corresponder às expectativas era algo de mais importante na vida de Cê. Ela pensou em quantos “já passou” Cê esteve e que aquela pilha iria passar, a meta iria passar, e o tempo de Cê já estava passando, passado. Cê reclamava de dores nas costas, de insatisfação, mas não desistia de cumprir as metas antes de todos. Mulher.Quase levantou-se para alertar Cê: “isso vai passar”. Mas não sabia direito sobre essa revelação/descoberta nem o que dizer. A angústia começava a virar tristeza. Se tudo ia passar... Espanto. Tudo isso vai passar. Suspiro. Abateu-se. Baixou os ombros e o olhar que nada olhava agora. Absorta tentava equilibrar o raciocínio claudicante. Tudo ia passar não restava dúvidas. E se assim será, o imenso desgaste emocional e físico não era necessário na maioria dos casos. Rasgou os lábios num sorriso. Era isso. Isso vai passar! O desafeto do dia, vai passar. Assim como o afeto. O ruim vai passar, assim como o bom. Encontrou-se num instante ali. Talvez a mensagem fosse que pequenas convenções sociais não merecessem tanta preocupação. Que não precisaria corresponder à todas as expectativas porque, afinal, “tudo isso vai passar”. Valorizar os momentos prazerosos porque iam passar. Desmistificar o peso do mal-estar porque ia passar. Repentinamente tudo parecia menos complicado com as dosagens adequadas de importância, considerando-se que “isso vai passar”. A angústia transmutada em respostas lhe trazia leveza. “Isso vai passar”.. Cê estava ao telefone, cenho serrado, maquiagem manchada e batom desgastado. Agá, Ele, Ípsilon...
Ésse chegou com o carrinho de correspondência. Ela sorriu, pegou as pastas e procurou por uma específica sem encontrar, desapontada.
- Ésse? As azuis ainda não chegaram?
- Daqui a pouco vai passar.
Ela sorriu na calma que há muito não lhe acalentava.
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