Jamaica
Até onde sei|Octavio Tostes
Chegou suave. Negro, baixo e forte, cabeça raspada, camiseta branca do São Paulo, bermuda vermelha e havaianas pretas gastas.
- Tá ruim de onda, né?
- Nada, ah turma brincando lá - apontei com o queixo o mar da Pompéia no posto 2 em Santos. Me observou tirar a capa da prancha do porta-malas. Quando eu guardava a long, segurou o bico, solidário e em busca do ganho.
- Obrigado, cara.
- Nada. Tu é do Rio?
- Sacou o sutaque, né. Tu é de lá também?
- Sou. Da Providência, a primeira comunidade do Brasil.
Pegou mesmo chamar favela de comunidade, pensei colocando a prancha sobre o rack. Justo a Providência que os soldados de Canudos ocuparam e chamaram Morro da Favela pela lembrança da planta nordestina.
- Ali perto da Central…- carioquei.
- É…
- E do Exército, do Sentaí (restaurante português de frutos do mar).
- Sentaí… - pontuou, as gengivas esboçando um sorriso rubro-negro recortado por duas linhas de marfim.
- Tu fazia o que lá? - passei a fita sobre a prancha para fixá-la no suporte dianteiro.
- Trabalhava numa barraca no Aterro.
- E taqui por quê?
- O cara que eu trabalhava não cobrou a mais a cerveja dos homens? Levou oito de 40.
- Oito tiros de calibre 40? (Confirmou com a cabeça) Pessoal do movimento? (Silêncio afirmativo). Vacilo, hein?
- Falei que eu não tinha nada com aquilo. Mas vim pra cá esperar a poeira baixar. Logo agora que o Aterro bomba...
- Como é o teu nome?
- Paulo…
- Octavio
- …mas o pessoal me trata de Jamaica.
- !!!?
- Eu usava cabelo rasta - riu.
- Conhece o Claudião? - sondei cruzando a fita sobre a prancha.
Aquele ponto de flanelinha na avenida da praia é do Cláudio, que se impõe sobre os mendigos e os nóias que driblam os guardas municipais para usar o banheiro e o chuveirinho do posto.
- O Cláudio? Um moreno, sempre na estica?
- Esse mesmo, sempre de sapato.
- Meu camarada.
- Cadê ele?
- Cê não soube? Ele mostrou revista de mulher pelada pra mulher do barraqueiro e o cara quebrou ele.
- Caraca! E como é que ele tá?
- Meio quebrado, né? - zoou com sutileza carioca. - Sumiu até a poeira baixar.
- Nessa o Claudião vacilou.
Enquanto eu dava o nó na fita, provoquei-o pela camisa do São Paulo. Sou corinthiano. No Rio, descobrimo-nos flamenguistas. No paralelo que traçamos, São Paulo é Fluminense, Corinthians Flamengo, Palmeiras Vasco e Santos Botafogo. Contou que conversava com Eurico Miranda no Largo do Machado, o cartola sempre de charutão. E que tinha cobrado dele a promessa de ir para a Sibéria depois que Vasco foi rebaixado.
Terminado o nó, estendi a Jamaica, dobrada, uma nota de dois reais. Pegou. Não sorriu nem agradeceu. A cara parecia de tudo bem. Talvez sem vacilo.
Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.