Trajetória

...ligue os pontos... A frase me veio do nada quando caminhava no canal de Paraty. Nos passatempos da infância, o lápis riscava, a linha avançava e a figura, confirmando-se ou surpreendendo, encantava. Mas o que quer dizer esta lembrança nesta manhã clara de outono, férias, entre telhados coloniais, barcos que vêm e vão e o biguá no toco, olho enigma?...

...Pimenta no camarão thai do jantar, brisa no teto da traineira Maré Mansa singrando a enseada, murmúrio do mar, pio de bem-te-vi, estalido da mão no nado, sopro de maresia e plâncton, sargentos e agulhinhas disputando no azul turquesa fosco sobre o recife, farelos de biscoito sob meu corpo, flutuando de braços abertos...

...seriam pontos também minhas faces desconhecidas reveladas no olhar, voz e gestos de Marina, nestes dias juntos, raros no amor de ponte-aérea, saudade, zap e Facetime, acordos e desacordos, chegadas e partidas?...

… em sendo, como ligar o que captam meus sentidos ao sentimento primordial e avançando a linha invisível, em busca da figura, unir estes pontos aos de outros sentimentos neste tempo que nos desnorteia a todos? Admiração pelos corajosos que resistem nas arenas virtuais, asco pelos falaciosos que ludibriam, compaixão pelos inocentes que não sabem o que vociferam, raiva…

… em meio às incertezas da era de pós-verdades, quando tudo que se diz na verdade não é bem assim, apego-me aos valores recebidos no berço de onde vim: alcançar o bem comum, pois todos os homens são iguais perante a Deus (seja lá O que for; no século XX, quando eu era criança, “homens” era a humanidade; e se agora a afirmação de gêneros diversifica a linguagem, o essencial - justiça e direitos universais - antecede e atravessa esta questão)...

… voltando aos pontos e à linha, princípios, sentimentos e sensações não formam a figura da trajetória de uma vida, enquanto se a vive, por mais sólidos, honestos e líricas que soem. Talvez porque, como diz meu amigo Ulisses, jornalista científico encantado pelo Cosmos, navegador nas dobras do espaço-tempo…

…”Vivemos o presente. O presente que não existe. Como qualquer instância do tempo. O passado, inacessível. Como o futuro. Que, quando chega, também é passado. (...) O presente, mesmo irreal, dá a sensação de realidade”…

… e se a figura de pontos interligados para espelhar uma vida fosse a da linha imaginária unindo estrelas, delineando constelações?… Estrelas nascem, fulgem, morrem e sobrevivem, memória cósmica. Assim como você, eu e todas as pessoas que amamos... Vai saber, afinal o que é ligue os pontos numa manhã clara de outono, férias, telhados, barcos e uma ave que pousa, enigma?...