Clarice cancelada?
No tempo do cancelamento, acho que a gente nem tinha nascido
Se eu fosse eu|Do R7
A cultura do cancelamento é recente. Pop. A pessoa é « cancelada » quando faz, supostamente, algo que desagrada muito. Uma gafe, um mau comportamento. Um certo exagero de quem observa a multidão, esperando o deslize. E me diz, como seria Clarice Lispector nos dias de hoje? Seria cancelada?
Clarice nasceu em 1920 e morreu em 1977. Enfrentou a esquizofrenia do filho mais velho, Pedro. Enfrentou mudanças de países seguidas. Enfrentou a solidão. E a ditadura militar. Levava uma vida de sonhos, de conquistas e de palavras fortes. Não gostava muito de aparecer, era seca e assertiva. Tomava dezenas de tranquilizantes por dia. Bebia refrigerante. Não fazia exercício. Adorava pão com mortadela. Fumava horrores. E isso quase custou a própria vida. Em 1966, dormiu com cigarro aceso. O apartamento pegou fogo e ela ficou dois meses internada. Não era adepta de muitas festas e encontros. O próprio Chico Buarque revelou que ela o deixou no vácuo. Marcou jantar na casa dela e sumiu. Fugia de jornalistas. Se fosse interpelada, respondia muitas vezes as perguntas com perguntas. Ficou pra história a entrevista ao jornalista Júlio Lerner, na Tv Cultura, em 1977, a última que deu. “Desculpe, não vou responder”.
Educada e firme. “Eu não estou triste, só estou cansada”. O que a fazia mesmo relaxar era o cachorro vira-latas Ulisses. Que também fumava, comia flores, bebia uísque (só gostava dos de qualidade) e cerveja. Vida e autenticidade que a escritora admirava. “Tenho inveja de você, Ulisses, porque você só fica sendo”. Ulisses também seria cancelado?
Há quem diga que a cultura do cancelamento é para quem tem o botão do julgamento na cabeceira. As redes sociais têm o papel que os livros também têm? De obrigar a autorreflexão. Fez aqui, paga aqui. Tirou selfie no velório? Cancelada. Xingou as minorias no reality? Cancelado. Traiu a queridinha do Brasil? Cancelado. O cancelamento traz o que a gente acha que pode ser. Juízes de plantão, apontando o dedo para o bem e para o mal. Se Clarice estivesse viva, teria lá seus 103 anos. Imagine essa escritora de personalidade, de palavras secas e profundas, de amor e fervor, de intensidade à flor da pele, no tribunal do cancelamento a cada declaração. O que seria de nós sem os “cancelados”? Afinal, ser exige muito. E se a gente pudesse transformar o cancelamento em divertimento? Em livramento. Em música. Que honra ser do tempo em que ainda não havia para mim, Rita Lee. O que seria de nós sem Clarices, Ritas, Virginias, Machados? Acho que no tempo do cancelamento, a gente nem tinha nascido. Se eu fosse eu, talvez fosse cancelada. É uma pergunta? Desculpe, não vou responder.
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