Clarice Lispector, a judia que fugiu da guerra
"É com mulheres como esta que contamos para reconstruir a Itália"
Se eu fosse eu|Do R7
Bombas, tiroteio, medo e uma Clarice amedrontada e curiosa. Era tempo de se doar. De 1944 a 1946, Clarice Lispector morou em Napóles, na Itália. Casada com o diplomata Maury Gurgel Valente, Clarice enfrentou a Segunda Guerra na Itália com mãos delicadas de ferro. Foram dezenas de cartas que trocou nesse período rico de emoções e histórias com as irmãs Elisa Lispector e Tania Kaufmann, além de Lúcio Cardoso e muitos outros amigos. Nessas cartas, conseguimos ter a dimensão do que Clarice enfrentou em plena Segunda Guerra. Entre bombas, falta de comida, água, luz, medo... nasce uma Clarice que só queria ser. Que aprendeu a ter prazer. A belíssima carta ao amigo e escritor Lúcio Cardoso, de 26 de março de 1945, demonstra a vontade de ser útil na Cidade Sitiada. Cidade que, aliás, ela misturava com sentimentos e um certo desprezo consciente.
“Isso aqui é lindo. É uma cidade suja e desordenada, como se o principal fosse o mar, as pessoas, as coisas. As pessoas parecem morar provisoriamente. E tudo aqui tem uma cor esmaecida, mas não como se tivesse um véu por cima; são as verdadeiras cores. Um edifício novo aqui tem um ar brutal. Às vezes eu me sinto ótima; às vezes simplesmente não vejo nada, não sinto nada. Estou lendo em italiano porque é o jeito. A palavra mais bonita da língua italiana é gioia, embora alegria também seja bonito. Estamos num apartamento grande, com todos do consulado que são ótimas pessoas; mas nunca precisei de ótimas pessoas. Mas, enfim, por enquanto nada há a fazer...”
Clarice tinha acabado de publicar o romance de estreia, Perto do Coração Selvagem, e deixou o meio literário em transe, quase em gioia; ela se preparava para lançar o segundo romance, O Lustre, e precisou ali voltar às lembranças de família, uma espécie de medo de reviver a tal da Felicidade Clandestina. Em 1920, a família Lispector, judia, deixa a Ucrânia rumo ao Brasil, para fugir dos horrores da guerra. Clarice carregou na alma e em toda a obra esse estrangeirismo marcado por sangue e desespero. Em Napóles, deixou os italianos boquiabertos com a beleza exuberante, de traços russos e poucas palavras.
Ela pouco falava. Mesmo quando decidiu ser voluntária num hospital, onde ajudou dezenas de doentes, pracinhas brasileiros que enfrentavam os horrores da Segunda Guerra. A Lúcio Cardoso, Clarice se mostra generosa, disposta a dividir a genialidade com quem quiser. Sem modéstia e com vigor de sobra.
“Estou trabalhando no hospital americano, com os brasileiros. Visito diariamente todos os doentes, dou o que eles precisam, converso, discuto com a administração pedindo coisas, enfim sou formidável. Vou lá todas as manhãs e quando sou obrigada a faltar fico aborrecida, tanto os doentes já me esperam, tanto eu mesma tenho saudade deles...” Como Ângela Pralini, Clarice sabia que a mínima doação era quase um Sopro de Vida. Durante meses, foi voluntária na Seção de Serviço Social do Serviço de Saúde da FEB – Força Expedicionária Brasileira. Feições e aflições certamente retratadas na obra. Fez de graça, e emocionada ficou quando recebeu uma carta de um alto-comando. Clarice conta à irmã Elisa Lispector, em 20 de abril de 1945:
“Ao deixar a Chefia da Seção Brasileira de Hospitalização em Nápoles, cumpro o grato dever de agradecer a V.Excia. todo o serviço que tão espontaneamente vem prestando a nossa organização, colaborando na sua Seção de Serviço Social, trazendo o nosso soldado ferido ou doente o grande consolo do seu serviço e da sua graça. Nunca seriam demais as palavras que eu poderia dirigir a V.Ex. para expressar a minha admiração pela contribuição que trouxe a todos nós nestes momentos em que o Brasil precisa tanto de seus filhos. Em nome desses homens, de todos os que aqui labutam e no meu próprio, beijo, agradecido, as vossas mãos valiosas. Nápoles, 17-abril-1945 – dr. Sette Ramalho, Tte. Coronel Médico”.
Clarice ficou um tanto decepcionada com a falta de comemoração do fim da guerra. Às irmãs Elisa Lispector e Tania Kaufmann, ela revela em 9 de maio de 1945, de Roma:
“Uma das coisas de que eu estou surpreendida e vocês certamente também é que no bilhete de hoje de manhã não falei do fim da guerra. Eu pensava que quando ela acabasse eu ficaria durante alguns dias zonza. Aposto que no Brasil a alegria foi maior”.
“È finita la guerra!”. Clarice é surpreendida por um jornaleiro na rua, em Roma. A escritora posava para o artista plástico De Chirico, com quem acabou tendo uma amizade, e ficou paralisada. Clarice conta à Elisa e Tania:
“Eu também dei um grito, o pintor parou, comentou-se a falta estranha de alegria da gente e continuou-se”.
A beleza russa, de traços marcantes, e explosiva podia ter acabado com uma guerra. Pelo menos para um italiano que ficou paralisado quando viu Clarice na rua. Ela mesma revelou no conto “O maior elogio que já recebi”, publicado em 1968.
“Eu estava em Nápoles andando pela rua com meu marido. E um homem disse bem alto para outro, ele queria que eu ouvisse: “É com mulheres como esta que contamos para reconstruir a Itália”. Não reconstruí a Itália. Tentei reconstruir minha casa, reconstruir meus filhos e a mim. Não consegui. No entanto a italiano não estava fazendo galanteio, falava sério. Deus, fazei-me reconstruir pelo menos uma flor. Nem mesmo uma orquídea, uma flor que se apanha no campo. Sim, mas tenho um segredo: preciso reconstruir com urgência das mais urgentes, hoje mesmo, agora mesmo. Nesse instante. Não posso dizer o que é."
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