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Se eu fosse eu

Clarice terrivelmente mortal

Essencialmente mortal

Se eu fosse eu|Renata ChiarantanoOpens in new window

“Sou terrivelmente, essencialmente mortal...”

Óculos escuros, cabelos levemente arruivados, um cigarro na mão direita e um mini cinzeiro na esquerda. Os dedos das unhas da mão direita, roxeados em razão do incêndio que quase tirou a vida da escritora. O assunto era o ingresso da mulher na Academia Brasileira de Letras. O ano, 1977, nenhuma mulher havia ocupado uma cadeira tão prestigiada no mundo da Literatura. Clarice Lispector, até então, escritora consagrada no Brasil, debatia o assunto com desdém e mistério. Afinal, a Academia Brasileira de Letras, inaugurada praticamente um século antes, em 1897, não dava sinais de prestigiar as mulheres. E Clarice tinha uma espécie de “preguiça”, como falamos nos dias de hoje, e um mau presságio. Em rara entrevista, recuperada pelo Arquivo Nacional, Clarice entona poucas e afiadas palavras:

“Não vejo nenhum motivo para que a mulher não seja admitida na Academia Brasileira de Letras. Um escritor é uma pessoa que escreve, independente do sexo. Mas quanto a mim, eu jamais me candidataria, porque não sou bastante gregária, e sobretudo, sou terrivelmente, essencialmente mortal. Além do que, não me agradaria, que ao meu menor espirro, vissem em mim uma vaga”.



A morte foi tema constante dos contos, crônicas e romances de Clarice. O não entender era tão vasto e desafiador que a escritora não tinha pudor de revelar medo, angústia e aflição de sentir a morte batendo à porta. Ser imortal para Clarice era ser irreal. Um título funesto, sem atrativos. De obra onipotente e insubmissa, não se rendeu às cadeiras pomposas, nem elogios contemplativos. Mas sabia elogiar.

Escreveu à Lygia Fagundes Telles e demonstrou contentamento e orgulho quando a escritora cearense Rachel de Queiroz foi eleita a primeira mulher a ingressar na ABL, em 4 de novembro de 1977. Mística e intuitiva, Clarice foi cirúrgica nas previsões. Previu a entrada de três mulheres na ABL: Dinah Silveira de Queiroz, a própria Lygia Fagundes Telles e a grande amiga, Nélida Piñon. Nélida revolucionou a Academia Brasileira de Letras sendo a primeira mulher a presidir a ABL, no centenário da instituição, em 1997, quase 20 anos depois da morte de Clarice Lispector.


Clarice não teve tempo para prestigiar as amigas, mas, como já era de costume, deixou um mini furacão de percepções e ideias.

A Academia Brasileira de Letras surge no século XIX, em 1897, no Rio de Janeiro, na época a capital do Brasil, para divulgar, promover e prestigiar a língua portuguesa. Instituição privada e sem fins lucrativos, segue os padrões da Academia Francesa de Letras, com quarenta integrantes que ocupam as disputadas cadeiras acolchoadas. Eleitos por maioria absoluta e voto secreto, se transformam em “imortais” porque são “efetivos e perpétuos”, permanecendo na instituição até o fim da vida. Quando um integrante morre, começa a disputa para eleger um novo candidato. Machado de Assis, autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas, foi o primeiro escritor imortal. Para entrar neste ringue de Highlanders, é preciso ser brasileiro nato, e ter publicado ao menos um livro de valor literário. Em 2022, a atriz Fernanda Montenegro, então com 92 anos e Clariceana assumida, foi a primeira mulher a ocupar a cadeira 17.


A atriz Fernanda Montenegro foi a primeira mulher a ocupar a cadeira 17 da Academia Brasileira de Letras.

Atualmente, cinco mulheres fazem parte desse legado dos que nunca morrem na ABL. É pouco, é matemática. São 35 homens e a certeza de que não precisa ser mulher pra entender essa conta. Poucas mulheres e só brancas.

A escritora Conceição Evaristo tentou ser a primeira mulher negra a integrar a Academia Brasileira de Letras. Não conseguiu. Ocupa uma cadeira na Academia Mineira de Letras.

Conceição Evaristo tentou ser primeira mulher negra a fazer parte da Academia Brasileira de Letras. Não conseguiu. Mas sabe que a luta continua. Desde março de 2024, ocupa uma cadeira de luxo na Academia Mineira de Letras. Conceição é uma Clariceana cheia de peculiaridades, daquelas que escrevem sem medo. Roubou Macabéa pra ela e com doçura dos que também sofrem sem medo, transformou a nordestina em Flor de Mulungu. Macabéa e Conceição deram as mãos em busca do novo. Dos que não se tem, mas se pode ter.

Béa, Conceição, Clarice... “Se essa história não existe, passará a existir”. (Clarice Lispector em A Hora da Estrela)

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