Complexo de Vira-Latas: ainda estou aqui
Por que valorizamos mais nossos escritores-heróis quando eles são notados fora do país?
Faltando 100 páginas para ela terminar o livro “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, veio o deleite e o desabafo literário: “Preciso de uma conversa pessoal com o Brasil. Por que não me avisaram antes que este é o melhor livro já escrito? O que vou fazer do resto da minha vida depois que terminá-lo?” Seria uma frase qualquer, não fosse dita por uma norte-americana, agora encantada com o nosso Machadinho. Courtney Henning Novak encarou um desafio pessoal de ler um livro de cada país do mundo. Acontece que Courtney não aguentou nem terminar a obra-prima do Bruxo do Cosme Velho e foi para as redes divulgar o livro. Resultado: milhões de visualizações nas redes sociais com a publicação e “Memórias Póstumas” no topo da lista de mais vendidos de uma livraria virtual dos Estados Unidos. A versão em inglês do livro brasileiro traduzido por Flora Thomson-Devaux conquistou os americanos.

O que se viu a seguir aqui, em terras brasileiras, foi um contentamento machadiano difícil de esconder e a pergunta para levantar qualquer defunto: por que valorizamos mais nossos escritores-heróis quando eles são notados fora do país?
As aulas de Literatura do lado tupiniquim viraram um combo de orgulho/despeito/satisfação. O professor Henrique Landim machadiou: “É como se a norte-americana disse que ali naquele quintal chamado Brasil tem pessoas inteligentes, tem pessoas civilizadas. Por incrível que pareça, um tal de Machado de Assis. O Machado sempre foi um cara genial, desde sempre”. Desde que aquele menino franzino, epiléptico e autodidata, percebeu que podia mudar o mundo com as palavras, o Brasil nunca mais foi o mesmo. Machado é desde sempre, como disse o professor, o gênio, o “cara”. Quem devora seus livros, jamais esquece.
Não é a primeira vez que um americano se impressiona com a literatura machadiana. Susan Sontag também caiu de amores por “Memórias Póstumas”. Woody Allen disse que “foi um dos cinco livros que o influenciaram na vida”. Philip Roth o comparou a Samuel Beckett e o jornal americano The New York Times estampou na capa: “Um mestre da narrativa”.
Machado é um dos escritores brasileiros mais traduzidos no mundo. Vinte e quatro países e mais de 35 idiomas. Está ali no páreo com Clarice Lispector, a escritora brasileira mais traduzida no mundo. As obras de Clarice podem ser apreciadas em 40 países e pelo menos 32 idiomas.

O comentário de Courtney Novak sobre “Memórias Póstumas” trouxe à tona o nosso “complexo de vira-latas”. Termo criado pelo escritor e jornalista Nelson Rodrigues, que destacou a inferioridade em que o brasileiro se coloca frente ao mundo em diferentes situações.
Nossa literatura é uma das mais belas do mundo. Temos regionalismo exacerbado. Temos bairrismo exagerado, seca, rios, morros, personagens enraizados que sofrem, morrem, renascem, que vivem as agruras de um povo maltratado e sofrido. De mãos colonizadas que renascem quando escrevem Memórias, mesmo Póstumas. Que brilham na Hora da Estrela. São Vidas Secas, com Grandes Sertões, que o Tempo e O Vento levam. Tem a morte aqui sim. Tem a Morte e a Vida Severina. Tudo é Rio nesse emaranhado de Estados, de Lavouras Arcaicas e Cortiços, de Macunaímas, e Gabrielas Cravo e Canela, e sobretudo de quem já teve muitas Escravas Isauras. De quem já foi Pagador de Promessas e hoje só quer tentar enfrentar A Vida como Ela É.
Machado enterrou Brás Cubas. Nelson, precisamos enterrar nosso complexo de vira-latas! Nossas Memórias têm que ser Vivas! Vamos só deixar as Memórias Póstumas para Brás Cubas. Nossas Macabéas, nossos Casmurros, nossos Bentinhos nunca foram tão nossos.












