Análise: Conflito entre Rússia e Ucrânia não começou ontem
Se há uma verdade sobre as guerras, é que elas são sempre construídas sobre um emaranhado de mentiras
Patricia Lages|Do R7
Esta análise não tem a pretensão de explicar o conflito Rússia X Ucrânia ou fazer previsões sobre o que pode acontecer do outro lado do mundo e seus efeitos em nosso país. O objetivo é apenas relembrar que, se há uma verdade sobre as guerras, é que elas são sempre construídas sobre um grande e bem elaborado emaranhado de mentiras.
Ninguém em sã consciência é a favor das mortes e da destruição que as guerras causam, a não ser que haja uma “boa causa”. Sendo assim, os senhores da guerra criam narrativas para obter todo apoio de que precisam e, principalmente, para iludir a população, encobrindo suas reais intenções. E, assim como a estratégia funciona para guerras, também é bastante eficaz para que maus políticos avancem suas agendas nefastas sem enfrentar grandes resistências.

O presidente russo Vladimir Putin afirmou que o catalisador da ofensiva de ontem foi o acordo assinado pela Rússia para proteger a independência das autoproclamadas repúblicas populares do leste da Ucrânia. O Exército russo declarou estar apenas atendendo aos pedidos de ajuda de localidades como Donetsk e Lugansk, que, segundo a TV estatal russa, foram bombardeadas pela Ucrânia. Porém, o que estamos vendo neste momento é que o ataque russo não se restringe ao leste, mas abrange praticamente toda a Ucrânia.
Há quem esteja questionando o papel da Organização das Nações Unidas neste conflito e por que o Conselho de Segurança da ONU não foi capaz de evitá-lo. Mas é preciso lembrar que quem ocupa a presidência do Conselho neste momento é a própria Rússia. Também é preciso voltar um pouco mais no tempo para começar a entender que esse jogo não começou ontem.
Com o fim da Guerra Fria e da União Soviética, em 1989, a Ucrânia ficou com um dos maiores arsenais nucleares do mundo, o que deu início a uma discussão sobre o perigo que isso poderia representar. Enquanto a Ucrânia alegava que as armas eram sua única forma de evitar ataques russos, os Estados Unidos e a Rússia propuseram, em 1994, um acordo para que as armas fossem entregues ou destruídas, sob a justificativa de que o mundo inteiro corria perigo.
A contrapartida, caso a Ucrânia concordasse em abrir mão de seu arsenal, foi a promessa de proteção das fronteiras e da soberania ucranianas. Em outras palavras: nos entreguem as armas que os protegem de nós, fiquem totalmente desprotegidos, mas nós juramos que não vamos atacá-los. Em 1996, o acordo foi assinado, ficando conhecido como Memorando de Budapeste. Porém, apenas 26 anos depois, nem a promessa, nem o acordo serviram para livrar a Ucrânia da investida russa, que, sob esse ponto de vista, não começou há apenas poucos meses.
Geralmente, aquilo que vemos é apenas uma pontinha do iceberg e, mesmo assim, quase sempre a enxergamos depois que nosso navio é atingido. A política mundial atende aos seus próprios interesses, que, para quem ainda não percebeu, raramente são em prol de uma boa causa.