O câncer te transforma para sempre
Não sei quem irá abrir a porta. Muito menos sei o que vou dizer. Apenas estar ali, viva e com um sorriso de esperança, já é minha mensagem.
Papo de Paciente|Do R7
Cada um tem uma reação ao receber a notícia de que está com câncer. Aprendi que essa é a grande riqueza da vida: somos únicos, com feições, formas e comportamentos irrepetíveis. Igual a você não há outro, e isso é exatamente o que te torna especial para o mundo.
Contraditoriamente, desperdiçamos boa parte do tempo querendo ser iguais aos outros. Os tropeços da vida me mostraram que a comparação e a imitação enterra justamente o que temos de mais valioso: nossa exclusividade.
Talvez a grande missão da vida seja nos despirmos de quem não somos, e encontrar, sufocada debaixo de tantas mentiras, a nossa essência. Quando passamos a caminhar na estrada que é nossa, e não dos outros, é que começamos a viver.
O câncer levou meu carro de volta para minha estrada, ou melhor, me fez descobrir qual é meu verdadeiro carro. Difícil de admitir, mas muitas vezes erramos nosso caminho porque nem debaixo da própria pele estamos. Olhamos para todos os lados, menos para dentro de nós mesmos. E é apenas lá que moramos.
Esses dias recebi mensagem de um amigo que mora no mesmo condomínio: “Oi, Má, tudo bem?” “Tudo e você?” “Não muito. Minha esposa descobriu câncer de mama”. Na mesma hora voltei ao dia 27 de dezembro de 2021, quando no meu laudo apareceu escrito “carcinoma mamário invasivo”. Eu sei o que é viver esse dia, e meu amigo me propôs uma missão: conversar com a esposa dele.
A tarefa foi aceita com amor e responsabilidade. Hoje o que dá sentido para minha vida é ter um propósito: e acredite, saber por que e para que estamos de morada passageira nesse corpo é capaz de reerguer qualquer um.
Não sabia quem eu iria encontrar do outro lado da porta, mas tinha certeza de qual recado eu queria passar: o de que é possível ganhar com as dificuldades da vida. Por isso, mais importante do que eu diria, é como eu aparentaria estar. Lavei o rosto, coloquei um salto, passei perfume e uma maquiagem leve. Vesti um sorriso moderado – nem tão largo que desprezasse sua dor, nem tão pequeno que a aumentasse. Eu queria que ela se enxergasse em mim daqui a um tempo, e visse que é possível viver e, ainda melhor que isso, transcender. Estar bem, recuperada e transformada logo após terminar um tratamento tão agressivo já era minha mensagem.
Tivemos uma conversa sincera. Sua mãe havia morrido de câncer de mama, então a doença trazia um peso maior. Impossível viver a própria história sem rememorar o desfecho da mãe. Fiz questão de ressaltar os vários casos positivos que conheço, de mulheres que vivem há anos com o câncer em remissão.
Eu tentei doar o que talvez tenha me faltado na época em que eu vivi a descoberta. Como marinheira de primeira viagem no câncer, não sabia o que me esperava. Não conhecia ninguém próximo com a doença, e desbravei uma mata fechada sem nunca ter saído da cidade grande.
Não tenho nenhum ressentimento com a vida: sei que essa solidão era necessária para meu crescimento. Sorte que depois recorri às redes sociais, e lá pude me inspirar em mulheres que mostravam tudo o que era possível fazer com essa dor.
Despedi-me de uma mulher que já tem os braços fortes por muito remar na vida. Mas sei o quanto esse mar agitado vai torná-la ainda mais inteira.
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