Dôia
Até onde sei|Octavio Tostes
Para Luíza, o filho Antônio ‘Ratinho’ e netos
Abro meu livro inesquecível e as lembranças desfilam, páginas soltas pelo polegar. A grande sapucaia no quintal, o pilão de arroz, a moenda, canjiquinha e ciscando, frangas de pescoço pelado. Dôia, magro vestido de florezinhas, contando causos para mim e meus irmãos na sombra da árvore. A Onça, um Rei, o Macaco e o Coelho que me estende a pata e pula para uma história.
Diz que a Onça, que vivia caçando o Coelho, pôs pimenta no poço da mata. E ameaçou comer todos os bichos que bebessem a água e fizessem ísh-ái, ísh-ái para soprar o ardido.
Os bichos agüentaram quanto puderam mas quando a sede apertou, arriscaram. Primeiro foi o Macaco. Bebeu, ísh-ái, ísh-ái, e a Onça matou ele com uma patada. Depois o Burro, o Cabrito, o Bezerro, a Capivara, ísh-áis, todos mortos. Aí apareceu um bicho pequeno, coberto de folhas. Era o Coelho, que se lambuzara de mel, rolara no areião e colara as folhas.
- Quem é o senhor, “Seu” Bicho, que nunca vi na mata?
- Sou “Seu” Folharado. Já soube o que a senhora fez e vim beber essa água.
Enfia o focinho no poço, dá uma grande gole, devagarinho e respira forte pela boca aberta em “o”. Os outros bichos observam espantados.
- Que água boa, dona Onça! Não sei porque essa bicharada bebe um golinho de nada e faz ísh-ái, ísh-ái à toa. A senhora está certa. Tem que matar quem fizer ísh-ái, ísh-ai. Pra que fazer ísh-ái, ísh-ái com uma água dessas, temperadinha? Que ísh-ái, ísh-ai o quê, siô!
Bebe outro gole, se despede tirando o chapéu e vai embora.
Quando sumiu no caminho, veio um grito comprido, voz fininha a galope nas várzeas:
- Ô “Sua” Onça! “Seu” Folharado sou, o Coelho! Essa água tá danada! Ísh-ái, ísh-ái. Fiaaau – e uma gargalhada.
Meu livro inesquecível é a lembrança que guardo de Luíza, minha babá. Preta, magra, vestida de florezinhas desbotadas, Dôia que está no céu.
P.S.: Escrevi esta crônica há uns 30 anos para um concurso com o tema “Meu livro inesquecível”. Meu pseudônimo foi Felício Carreiro, homenagem ao pai de Luíza. Acho que se classificou, não lembro se foi publicada. Remexendo esses baús modernos que são as caixas de papelão, Dôia - após uma ligeira revisão com o que aprendi de cortar palavras - me salvou de um prazo já estourado de crônica nova. Obrigado, e que o céu para você seja um quadro naif de fábula. Com praia e onda, já que é paraíso.
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