Fábula urbana
Até onde sei|Eugenio Goussinsky

Um grito de mulher varou a noite, dando um toque de terror à tentativa de sossego do quarteirão. Parecia um uivo ecoando em uma floresta densa e assustadora. Depois vieram outros, carregando xingamentos repletos de ira. "Filho da p.......!!!!!". O som fez tremer o universo.
Uma plateia parou para acompanhar a cena. As estrelas no céu congelaram por instantes. As nuvens interromperam a lenta movimentação. Era um grito metálico, que vibrava como pontada.
Passageiros de avião olhavam pela janelinha para ver o que acontecia. O vento interrompeu seu refrescante sopro, assombrado com a ocorrência. E os vizinhos dos prédios ao redor saíram na janela, uns de pijama, outros sem camisa, descabelados, interrompendo o sono protetor para saber quem era a autora do escândalo.
E ela continuava. Primeiro, da sacada, para um homem parado lá embaixo, na rua, em frente à portaria. Era um bairro tranquilo, repleto de prédios de classe média alta para cima. "Filho da p....." O cidadão parecia submisso, indefeso em sua vã tentativa de acalmá-la.
Estava proibido de entrar. E ouvia impropérios que continham também críticas à sociedade, do tipo "chega de falsidade dessa gente hipócrita". Ela colocava o cara na berlinda e ao mesmo tempo se libertava de qualquer convenção social.
Continuou berrando, quando resolveu descer. Dava para imaginá-la percorrer os degraus da escada, de camisola, em passos obstinados de raiva. Lá embaixo, era frente a frente. Só o homem pôde ver de perto o fogo do inferno que saía daquele olhar.
A confusão era por causa da descoberta de uma amante. A mulher indignada não se importava em se expor daquele jeito, tão frágil, tão vulnerável. Era um grito de ódio. Mas acima de tudo, de dor.
O engraçado de tudo isso é que, nestes tempos de exigência total do próprio espaço, não houve contestação. Nenhum grito de "olha a hora". Tampouco de "vamos para esse barraco!" Nem de “tem gente que acorda cedo!” Pelo contrário. A vizinhança compartilhou, respeitosa, o desnudar das fraquezas. Também se despiu das defesas do dia-a-dia.
Esqueceu-se da necessidade do status que impera a partir do momento em que se sai de casa. Afrouxou nos vizinhos a obrigação de, em poucas horas, ter de levantar para vestir o terno e gravata, parecer normal, ser comercial, enfrentar o PowerPoint, mostrar-se inteiramente adaptado ao configuracionismo organizacional da empresa, mascarando-se por trás das leis da comunicação corporativa.
Nenhum deles se preocupava, naqueles instantes de histeria, com os trajes mais elegantes, nem em mergulhar na superficialidade forçada da rotina, na tentativa de aparentar força. Não, naquele momento estavam todos unidos.
Cada um dos espectadores assumiu que, diariamente, é ele quem vive por um fio, podendo a qualquer momento estar à mercê da sensação de abandono. Enquanto a moça berrava, eles olhavam também para dentro de si, acompanhando o desabrochar de sua própria humanidade.
E permaneceram em tom solene até o fim do enredo, como se apreciassem uma triste ópera de camarote. Em vez de usar aplausos, demonstravam a comoção sem exaltação ou qualquer palavra. Quando os gritos pararam, causando certo alívio e estranheza, todos voltaram humildes para seus leitos.
A mulher, esgotada, deixou o grito lá, latejando mudo, atrelado ao desespero, enterrado dentro de si, encerrado no silêncio que se fez obrigatório, mergulhada em sua insônia de purgatório, a se misturar com a passagem do tempo, a se embrenhar no apagar das estrelas.
E quando amanheceu, algo diferente aconteceu. Na volumosa copa da árvore em frente ao prédio, uma legião de pássaros se pôs em alarido, assim que surgiram os primeiros raios de sol. E prosseguiu sem parar, até quase meio-dia, numa sinfonia única, jamais vista naquela rua.
Poderia se dizer que estavam reunidas as 400 espécies da cidade de São Paulo: sabiá-laranjeira, perdiz, jacutinga, tucano-toco e até pitiguari. Faziam um lindo trabalho de transformação dos gritos de fúria em cantoria de alento e esperança. Cantavam para a mulher traída. Para os vizinhos compadecidos. E para todos nós, frágeis e filhos da p...