Finados
Até onde sei|Octavio Tostes
Os mortos governam os vivos. Esta frase, que guardei como a epígrafe do romance “Incidente em Antares”, de Érico Veríssimo, volta e meia me vinha à mente feito um fantasma. Li o livro rapazote. Nunca mais esqueci da cena em que sete mortos da fictícia cidadezinha gaúcha, insepultos por causa de uma greve geral no agitado ano de 1963 no Brasil, ocupam a praça de Antares e desfiam os podres daquele pequeno mundo.
Acho que a cena, puro teatro grego, estudantes fazendo coro com as assombrações, me impressionou porque na época eu era um tanto guiado por meus mortos. A começar pelo avô paterno. Falecido quatro anos antes de eu nascer, herdei-lhe o nome por ser o primeiro neto homem. Uma vez, no quarto de móveis escuros, dominado pelo alto oratório de São Roque, padroeiro da fazenda na divisa entre Rio de Janeiro e Minas Gerais, minha avó Emerenciana disse que gostava de todos os netos; mas eu, que tinha o mesmo nome do avô... por isso devia ser um bom menino.
Chovia todo Finados, papai dirigia só com a mão direita para controlar o zigue-zague do carro na lama. Íamos a Cataguases e Leopoldina visitar os túmulos de vovô Octavio e dos pais de minha avó. Ela depositava as flores, se ajoelhava, cerrava os olhos, inclinava a cabeça coberta pelo véu preto, o queixo quase tocando as mãos entrelaçadas e eu assustado pensava o que será que ela dizia no silêncio.
Hoje, e foi tão rápido, vovó Emerenciana descansa no São João Batista no Rio. Vovô Octavio, ossos em Minas. Papai, sepultado em uma colina - ele enxergava longe, disse meu irmão que ergueu o túmulo -, convive em Miracema com as cinzas do sogro, vovô Roberto. As de vovó Edmeè jazem entre pés de alamanda num recanto da fazenda.
“Incidente em Antares” não tem epígrafe, era uma rasteira da memória. A frase sobre os mortos, com outra redação, aparece na segunda parte do livro como citação de Júlio de Castilhos, influente político gaúcho do início da República, admirador do filósofo positivista Augusto Comte a quem se atribui também a ideia de os mortos regerem os vivos. O romance foi o último de Veríssimo. Combina narrativa histórica com realismo mágico e na tradição das sátiras, é um libelo de crítica social publicado em plena ditadura militar em 1971.
Dia destes numa aula de mitologia grega, a propósito de Hades, rei dos que se foram, perguntei à professora, psicanalista, se os mortos governavam mesmo os vivos. Sim e não, respondeu. Depende de como vivemos e lidamos com nossas lembranças. Vívidas ou esquivas, as memórias tanto nos prendem ao passado quanto dele nos libertam.
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