MOSTRE ALGUMA COISA, JOAN
Até onde sei|Carmen Farão
“Olha isso, é demais! ”.
Mal tinha se refeito da velocidade com a qual ajustava o rolo no Tascam e já servia o uísque que se tomava à despeito de hora ou razão. Que som. Que voz, que música. E assim Joan Armatrading habitou por um bom tempo o toca fitas do carro, Armatrading não havia no Brasil. Naquela tarde ganhara uma generosa K7 C-90 com mais de um álbum. “Show Some Emotion”... lembrou. Sentia falta daquele modus operandi. Porque era gostoso. Só isso. A reunião na casa do diretor acabou por se tornar um encontro à dois. Foi na José Maria Lisboa que viu pela primeira vez um gravador de rolo fora de um estúdio de som. Achou chique. Rico. O uísque era bom também. Lembrava dessas coisas quando de lá pra cá na cidade algo lhe conectava o relê de memória. Gostoso. Tudo havia mudado e a mudança inevitavelmente trazia comparações. Porque era gostoso e só. Sem lamentos.
Ouvia definições constantes sobre lembranças de tempos passados: “fulano é melancólico, saudosista, não aceita mudanças”. Não! Não! Não! Não era nada disso. Talvez com fulano fosse, mas não com ela. Não trocaria seu tempo atual por nada. Não trocaria suas memórias por nada igualmente. Porque era gostoso. Saudade era gostoso. Dava prazer, leveza e delícia pensar no que um dia foi bacana. Assim, privava-se. Comportada em sua nave curtia de tudo. Dentro do carro ela e ela. Ela e a música que escolhia, o caminho que queria. As risadas que preferia. Era gostoso. E só.
“Opportunity came to your door...”. Fala, Joan. Não era uma coisa bacana, mas poderia ser.
Não raro estranhava a intimidade com o papel que não existe. Entregue e entusiasta da tecnologia, distraía procurando nas lixeiras internéticas algum software que imitasse o barulho das teclas de uma máquina de escrever. Em vão. Havia alguns, sim. Mas os ruídos em looping não representavam sequer uma máquina elétrica de direito. Queria sentir o som em torno quando jogava o que achava melhor em tinta azul no papel que findava. Olha só, acredita? O papel acabava. A torcida por “mais uma frase” na mesma folha. Saudade de fita nova, ver as letras fortes, nítidas em super vinco no papel. Do “rrrroc-
rrrrrrrrrrroc” ao enrolar a lauda no cilindro. Um ritual que antecedia a escrita, quase como um cigarro durante um pensamento. Olhar uma folha inteirinha em branco montada naquela aranha cheia de pernas se esticando (estranho, mas era assim que via aquela máquina preta de escrever. Ser vivo, esperneando) era um must. A primeira frase e o não poder errar. O “zzzzzzzzzzzzrrrrriiiiimmmmmm” ao puxar para fora a insatisfação no registro de uma ideia mal formulada. O lixo cheio de papéis amassados. A mão irritada e pesada descascando o esmalte. A revolta ao juntar todos os tipos emaranhados, bolo de ferro e letras frente ao cilindro quando a mecânica não era tão rápida quanto os dedos e o pensamento. Era bacana, sim. Não substituiria pelo maravilhoso note, o misterioso tablet e o invencível desktop. Não, não. De forma alguma. As facilidades, a tranquilidade, a segurança e a delícia eram insubstituíveis. Mas tinha dessas saudades analógicas. Memória física, tinha ouvido uma vez. Lembrou de um outro Diretor de Fotografia famoso com quem trabalhava constantemente. Era enfático: “o filme existe, a imagem é impressa pela luz solar ou não. Existe. Vídeo não existe! Uma série de pontos marcados num plástico pintado com óxido. Não existe”. Talvez.
O certo é que sentia falta de coisas que foram melhoradas, mas não substituídas. Era gostoso. Mirar a agulha da vitrola na faixa do disco que queria ouvir. Errar, ups, sustinho, acertar, delícia, vai tocar, espera... agora vai. Foi. Escuta.
“Never is too late and a dance short lived or long is all that’s needed”, né, Joan?
Emoçõezinhas baratas, tolinhas, sem força para mudar o mundo, suficientes para melhorar o dia que hoje não têm lugar , substituídas pela tecnologia. O silêncio nas redações, nenhum mantra. Em cada mesa, uma máquina de escrever. Cinza clara era padrão. E todas “tocavam” initerruptamente o mantra da redação. Tecla-teclando-tecla-teclando-zzzzzzzzzzzip – tecla-tecla-tecla-cla-cla-lcac. Um exercício e tanto de concentração. Bela escola. Gostoso. Só gostoso. Joan Armatrading não toca no rádio. Mas tem e apps, olha que gostoso! “Hey, com’on! Show some emotion. Put expressions in your eyes.”. Só porque é bom, faz bem, é gostoso.
Podia quase ver o rolo girando no taskam . Que graça. E, Joan, legal isso aí também
“I said I’m Strong, straight, willing, to be a shelter in a storm. Your willow whem the sun is out”.
Melancolia, nada. Era feliz com isso tudo.
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