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O cantor das apresentações íntimas

Até onde sei|Eugenio Goussinsky

Nunca se ligara de verdade a alguém. Era assim desde o orfanato, para onde foi enviado após o parto da mãe, morta no hospital. De lá fugiu aos sete anos, deixando para trás os ruídos bucólicos mas uma experiência de permanente desencontro com as funcionárias do local, com as outras crianças e as conversas superficiais que não preenchiam o vazio de sua solidão. 

Desde cedo se ressentia de cada afastamento, proveniente do permanente desencontro entre as pessoas. Tentava, mas não conseguia assimilar a frase do psicanalista Bion, sobre a qual um dia ouviu um médico pronunciar no corredor de um hospital: "o segredo das relações era tornar proveitoso um mau negócio". E esse mau negócio, para Bion, era o encontro entre duas pessoas. 

Refugiou-se então na música, conhecida aos nove anos quando ficava no bar da Freguesia do Ó ouvindo o violonista varar a madrugada desfilando um repertório que ia de Bee Gees a Dona Ivone Lara. 

De cortiço em cortiço, se soltou no violão, adquirido como pagamento de um belo vocal a capella, e foi se aperfeiçoando até se tornar adulto. Ganhava trocados se apresentando a céu aberto e, em remunerações inusitadas, já foi pago com refeições em bons restaurantes, caixa de som e até arma.


Muita menina se apaixonou por suas apresentações íntimas, em hotéis baratos da baixa Augusta, onde se acostumou a sorver a noite embebida de batons, luzes, gosto de uísque barato e, para ele, um encanto desesperançoso.

Sabia que toda a beleza da sua voz era mínima perto da realidade da solidão. Cantava, mas se fechava em sua jaqueta velha e escura, na calça de sarja preta surrada, na barba morena que dava um charme sujo ao seu rosto ainda jovem.


Um dia, na boate, entre os veludos das poltronas, ouviu pela primeira vez Stand By Me, música que resumia o desejo que ele queria esconder das pessoas: fique comigo, fique comigo. 

A moça morena, de biquíni sedutor, dançava sobre a mesa, apegada a um mastro preso no teto. Ela lhe despertou um sentimento tão forte que ele chegou a se odiar. Não, não precisava pedir para ninguém ficar ao seu lado, chorar o seu choro, decifrar o seu rosto. E depois, roubar os seus sonhos com o ingrato afastamento.


Penetrou no olhar terno da moça que, para além da pornografia, revelava a mesma carência dele. Levou a jovem para o mesmo quarto na Augusta e a amou pela primeira e última vez. Depois foram juntos para um bosque conhecido, próximo a Itaquera, onde ele disse que morava.

A notícia do surgimento do corpo feminino foi publicada dias depois, mas ninguém percebeu que foi ele quem a matou, acertando uma bala em seu coração, e com ela enterrou o testemunho da sua carência. Então foi tocar e cantar.

Pensava resolver seus dramas atirando em pessoas que conhecia rapidamente nestas andanças diárias para, em seguida, ir presentar o povo com suas melodias no metrô e na rua, de vagão em vagão, de calçada em calçada. "Boa tarde pessoal, sou artista de rua, conheçam meu trabalho e se gostarem podem colaborar". Vinham os primeiro acordes e as frases ecoando fortes e atraentes.

Desabafava sua frieza nos versos que encantavam. E só não era aplaudido por causa da inadequação da situação. Ninguém aplaude cantor de trem na cidade grande. Ele não precisava mesmo. Gostava de cantar para matar sua sede de amor, para disfarçar seu desencanto com o encanto de sua voz.

A noite chegava e o convidava a extravasar sua excitação pela cidade escurecida, testemunhado por uma lua tão romântica quanto sua voz e tão gelada quanto seu espectro assassino.

E foi na apresentação no trem, entre as estações Santa Cecília e República, que ele conheceu novo amor. Ia saindo do vagão e a jovem, de óculos e um rosto delicado e sincero, foi parabenizá-lo. Perguntou onde aprendera e ele, fascinado, contou-lhe toda a verdade: o abandono no orfanato, o bar da Freguesia...

As horas foram passando. Beijaram-se, sob a benção daquele dúbio luar, o belo e o assassino. Enquanto a acompanhava para a Cohab da zona leste, onde ela morava, foi se abrindo com cada vez mais profundidade. Revelou a música que mais gostava. Admitiu que tinha medo dos encontros.

O mundo está se acostumando mesmo com uma modernidade cuja liberação dos costumes abre espaço para a libertação do mal. Que, na visão deturpada de uma sociedade anestesiada, se confunde com o bem.

Antes da última declaração, ele lhe fez uma serenata. Depois confessou como fazia para atrair uma vítima a um local ermo e a exterminar. Desviou os olhos do olhar assustado e, num rompante cego, atirou à queima-roupa no peito dela. Era a única maneira de tê-la para sempre.

Do resto, a música se encarregava. Sua sombra foi se distanciando do corpo estendido. Matava para ser o dono de suas perdas. Cantava para superar a dor da separação. A canção novamente preencheu a rua, no ritmo de suas passadas em direção à próxima estação de metrô. Eram passos tranquilos, cientes de um dever cumprido. Completadas pelo eterno pedido melódico. Como era bonito ouvi-lo repetir Stand by me, stand by me.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.

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