Orações aos moços
Até onde sei|Eugenio Goussinsky
Um dia, um senhor falou que, de tanto ver triunfar as nulidades, o homem chega a desanimar das virtudes.
Outro homem, muito tempo depois, se destacou em todos os jornais ao comparar o futebol a uma guerra, com olhar irado, expondo os anos que ele teve de aprendizado em seu universo de trabalho.
Já envelhecido para a profissão, o primeiro prosseguiu: de tanto ver crescer a injustiça, o homem chega a rir-se da honra.
Também experiente, e autoproclamando sua força inquestionável, o segundo disse que os colegas deveriam entrar no batente de peito erguido, arrotando para si mesmo algo como: "meu time é grande, meu time é grande, eu sou o melhor, eu sou invencível, só eu existo".
Mais sereno, e não menos eloquente, o outro completou: de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a ter vergonha de ser honesto.
O segundo, sob olhares comovidos dos chefes, técnico, presidente e opinião pública, foi em frente, diante de seus soldados, extasiados com a prosa: eu ficava arrepiado quando vinha jogar aqui!
Sem se arrepiar, mas ainda emocionado, o primeiro não se intimidou com oratória tão aclamada e tocou em uma questão ética que tanto o assolava, falando inclusive de suas fraquezas, para tentar encontrar com isso a sua força.
O outro não. Ele vivia em um mundo de certezas: bola dentro bola fora, heroi ou covarde, vitorioso e derrotado. Animal e humano.
Mas o lado animal, apesar de ser reconhecido, era totalmente insuficiente, na visão do primeiro. Era preciso ir mais além.
Daí, inclusive a sua contrariedade em relação às nulidades, aos maus poderes, à injustiça, frutos desta selvageria à qual os homens se apegam com seus brados chauvinistas.
O segundo tinha a certeza, corroborada pelo rebanho, de que ir além é ser animal.
Em tom emocionante, o primeiro exortou os mais jovens a manterem a pureza, a continuarem um trabalho digno no Direito.
"Estou-vos abrindo o livro da minha vida. Se me não quiserdes aceitar como expressão fiel da realidade esta versão rigorosa de uma das suas páginas, com que mais me consolo, recebei-a, ao menos, como ato de fé, ou como conselho de pai a filhos, quando não como o testamento de uma carreira, que poderá ter discrepado, muitas vezes, do bem, mas sempre o evangelizou com entusiasmo, o procurou com fervor, e o adorou com sinceridade."
O segundo não arredou pé. Disse que o seu discurso também foi inspirado na bíblia: Au, Au, Au, Edmundo é animal...
O primeiro, porém, não entendeu o porquê de o outro não ter falado uma palavra sequer sobre respeito ao adversário, à arbitragem, em humildade, em lealdade na peleja, em honestidade. Em pureza. A fala belicosa ganhou ares de sabedoria.
"Ele fez um discurso que vocês precisavam ver", disse o professor do segundo, como se falasse das profecias de Isaías.
O primeiro, visitando o futuro desde a São Paulo do café, percebeu que suas palavras marcaram, mas que ainda falta mudar muita coisa. Talvez muitas nulidades sejam as mesmas.
Não há dúvida de que o segundo já poderia enriquecer sua fala com os ensinamentos do primeiro. Teria todas as condições para isso, mas não seria hoje tão aplaudido.
Deixa pra lá. Vida que segue. Bola que rola. Futuro que ainda sorri. Vai jogar bola, Zé Roberto. Descanse em paz, Rui Barbosa.
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