Os gatos e o periquito
Até onde sei|Octavio Tostes
O plantão do domingo estava tranquilo na Record TV, apesar de mais uma rebelião de presos com mortes em Manaus. “Tranquilo” para jornalista significa apenas cobertura sem correria. Diferente de quando o helicóptero com a noiva indo para o casamento cai na tarde de temporal, em lugar de difícil acesso, com a fotógrafa grávida a bordo, pouco antes de o programa ir ao ar.
Em um dos bebedouros da TV encontrei Adriana, colega que não via há algum tempo. Perguntei sobre seu plano de fazer Veterinária para viver da paixão por animais. Ela, que havia começado e parara, disse que tentaria de novo uma bolsa de estudo; e que agora, além de três gatos, convive em casa com um periquito-verde.
— Como?
— Uma amiga achou o filhote na rua. Subiu num banco e colocou no galho perto do ninho. Os pais estavam pousados na rede elétrica, chamando a cria, mas ele não saiu do lugar. Armava uma tempestade e ela trouxe para mim. Você sabe como eu sou - contou com o meio sorriso dos que acolhem bichos pelo caminho. O veterinário avisou que sem os pais, o periquitinho não sobreviveria. Adriana teria de cuidar dele. Um ano depois, espevitado, ele fala: “Gato”, “Miau”, "Oi", "Oi, gatinho", "Maçã", “Gostoso", "Gostosinho" e "Kiwi”. Só come maçã e uma ração fraquinha que aprecia porque é colorida.
— E os gatos, não comem o periquito?
— Não. Eles se dão bem. A siamesa Thelma, mais velha, nem liga. O persa Haru gosta dele quando está pousado; quando voa, tem medo e se esconde. Mas o passatempo predileto do Haru é sentar em cima da gaiola do periquito para tomar ar na janela. Claro, ele tenta puxar o rabo do Haru. O periquito brinca mesmo é com o siamês-vira-lata Manuel, o gigante de oito quilos protetor da turma - acrescentou mostrando no celular a foto acima.
— Mas e o instinto caçador dos felinos?
— Não sei. Meus gatos acham que são gente. E o periquito, que aliás se chama Gato, também deve se sentir gente. Se eu fizer Veterinária, quem sabe não explico essa crise de identidade numa monografia?
Em um vídeo no celular, Gato passa da cabeça de Adriana para o dorso do Manuel, com a sem cerimônia de quem se sabe o xodó da casa. Me despedi da colega. No resto do plantão, enquanto lia artigos tentando entender o que acontece no Brasil, imaginei que nestes dias de motins e degolas, autoridades incentivando matanças com o silêncio cúmplice dos que confundem justiça com barbárie, a história dos gatos e o periquito de Adriana bem poderia ser uma fábula da tolerância.
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