Blossom Toes "We Are Ever So Clean": A psicodelia no auge dos anos 60
Chá da tarde, Parques Reais de Londres, música barroca e psicodélica. Esses são alguns dos ingredientes que formaram uma das maiores jóias da música lisérgica britânica de 1967
Toque Toque|LEO VON, do R7
Era 1999 e eu tinha 11 anos. Essa era minha fase de fanatismo absoluto pelos Beatles, ainda estava descobrindo mais profundamente o trabalho deles mas já tinha minhas preferências muito bem estabelecidas, assim pensava. Em casa, tínhamos somente um computador, presente do meu avô, e por isso ficava no meu quarto. Suficiente pra entender porque meu pai ficava praticamente todo o tempo livre dele ali jogando Freecell e descobrindo o que era a internet. Eu herdei um aparelho de som dos anos 80 que tinha Vinil, CD, fita K7 e rádio, ou seja, tudo. Mas ali comigo só tinham os discos dos Beatles, todos em vinil. Foi numa dessas vezes que ouvi I am The Walrus do “Magical Mystery Tour” pela primeira vez. Lógico que fiquei completamente em choque com aquela música. Era muita informação numa faixa só. Meu pai parou o jogo, virou pra mim com um olhar de curioso e perguntou: “Você nunca tinha escutado isso”? “Não”, respondi. “Então eu preciso te mostrar algumas coisas”!
Os discos dele ficavam todos guardados num armário e nunca ninguém pegava. Em 99 os CDs já eram regra faz tempo e o vinil tinha ficado meio que esquecido pela “falta de praticidade”. Tinha que tirar da capa com cuidado, não rasgar o saquinho de proteção, colocar no aparelho e lentamente posicionar a agulha na faixa correta, sem riscar. CD era mais rápido e não fazia ruído. Meu pai dizia muito a frase: “Você vai cair duro pra trás”!, quando queria causar expectativa, então: “Vou pegar uns discos que vão fazer você vai cair duro pra trás”! Na coleção de LPs velhos e empoeirados, alguns até com mofo, tinham pérolas como Toto, Chicago, James Brown, Ray Charles, Jimi Hendrix, Marvin Gaye. Ele ia separando em três pilhas e percebi que eram: coisas toscas que provavelmente ganhou de artistas que iam no programa de talk show dele na Record; discos que pareciam mais sérios como os que citei anteriormente, e; uma só com capas muito loucas. Dava pra ver que eram tipo Sgt. Pepper’s ou Magical Mystery Tour. Essa pilha de discos foi a base da minha formação musical na pré-adolescência. Tinha The Young Rascals (também dos The Rascals), The Association, The Turtles, The Byrds, Kinks, ? and The Mysterians, Aphrodite’s Child, Second Hand, entre muitos outros.
Ele enfatizou bastante o disco “We Are Ever So Clean” do Blossom Toes. Disse que era uma das melhores coisas que tinham sido lançadas nos anos 60. Naturalmente esse foi o primeiro que me interessou. Tirei da capa sem rasgar o saquinho, com todo o cuidado do mundo coloquei no aparelho e levemente levei a agulha ao ponto certo da primeira faixa. Só percebi depois, mas me enganei e comecei ouvindo pelo lado B. Primeiro o som do ruído… expectativa… “Yee! Introduction margin, introduction margin, introduction margin, yeah, introduction”. Quê? Essa era a introdução do disco? Um cara meio doido falando “margem de introdução” com uma voz estranha e um violão tocando toscamente no fundo? Pois o que eles estavam fazendo era ironizar o próprio vinil, e a espera até o início da música na margem de introdução. Começou bem, eu já estava com um sorriso no rosto!
“What on Earth” foi surgindo lentamente. Os instrumentos elétricos do rock de um lado, metais e orquestra do outro, o vocalista sozinho cantando as primeiras frases bem à lá anos sessenta. A orquestra foi crescendo, a soma do coro com a clássica abertura de voz do gênero surgindo gradativamente. Cresce, pausa, cresce, mais de uma vez. Expectativa, suspense. Vem a bateria, entra o refrão. Alívio, gratificação sonora! Que preciosidade. É Penny Lane, Revolver, Sgt. Pepper’s, é Bach, música barroca, tudo que eu mais amava. Dinamismo, pop e psicodelia, rock. A letra dizia “Nós somos tão puros. Mais limpos que uma língua numa máquina de lavar”. Era Beatles sem ser os Beatles. Na primeira faixa eu já estava apaixonado por aquilo tudo.
Nas próximas, mais brincadeiras com a margem de introdução. Ali percebi que tinha ouvido algo parecido nas intros de Taxman (Revolver) e Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Já o Blossom Toes fez isso em todas as margens e introdução do disco, às vezes só alguém falando bobagens aleatórias, outras sons dissonantes e esquisitos. Parecia que eles levavam tudo que já tinha sido feito pelos Beatles ao extremo. Eu amava aquilo.
Blossom Toes foi uma banda com muito pouco tempo de duração e sucesso bem limitado. Após assinarem com a Marmalade do empresário Giorgio Gomelsky, lançaram dois discos. O primeiro, esse do qual se trata o artigo, em Outubro de 1967 e o segundo, “If Only For A Moment” de 1969, com uma orientação mais Hard Rock e muito menos psicodélico. Isso porque a quantidade de instrumentos adicionais e orquestra era grande demais para reproduzir o som ao vivo, o que prejudicou muito a carreira da banda, além do excesso de críticas que sofriam por ser “muito Beatles”, “muito Kinks”. A banda acabou em 1970.
O disco segue num tom alegre, irônico e divertido, com pitadas eventuais de loucura extrema. Em termos de identidade sonora é bem uniforme, com guitarra, baixo, bateria e vocais sessentistas, contrapostos por brilhantes arranjos de orquestra inspirados principalmente pela música barroca (aproximadamente entre os anos de 1600-1750). Uma característica bem interessante é a “britanicidade” no teor das letras, ambientações e sátiras que permeiam a obra. Dá pra sentir o gosto do chá, ouvir a marcha dos casacas-vermelhas num parque real ao sol das 5 da tarde. Isso se o chá fosse de cogumelos e os soldados marchassem ao som de acid rock com flores no cabelo. Essas “inglesices” encontramos em “People of the Royal Parks” (O Povo dos Parques Reais) “Telegram Tuesday” (Telegrama de Terça), “Mrs. Murphy's Budgerigar” (O Periquito da Sra. Murphy), sem esquecer da pontualidade britânica enfatizada em “I'll Be Late for Tea” (Vou Me Atrasar para o Chá), “Mister Watchmaker” (Senhor Relojoeiro) e “When the Alarm Clock Rings” (Quando Toca o Despertador).
Esse é um daqueles álbuns que é legal ouvir na íntegra, sem se preocupar com as faixas individuais. Ele não necessariamente conta uma história ou tem qualquer tipo de lógica cronológica, mas conduz muito bem as nuances dinâmicas entre as músicas (e dentro delas também). Entre a esquisitice de “The Remarkable Saga of the Frozen Dog” (A Notável Saga do Cachorro Congelado) e a belíssima melodia de “Mister Watchmaker”, temos composições surpreendentes, até mesmo a genial “Track for Speedy Freaks (or Instant LP Digest)” (Faixa para Loucos por Velocidade (ou Digestão Instantânea do LP) em que combinam todas as músicas do disco numa só, tudo embolado, pra quem quiser “economizar tempo e ouvir o disco inteiro de uma vez”.
Para sermos justos, quase todas as bandas que lançaram qualquer trabalho em 1967 foram comparados ao Sgt. Peppers. Seja por inspiração, pelo momento, ou porque realmente passaram a mão. Os Rolling Stones com “Their Satanic Majesties Request”, The Hollies com “Butterfly”, “Something Else By The Kinks”, ou até The Moody Blues com a obra-prima “Days of Future Passed”. Mas o Blossom Toes, assim como tantos, foi além. Durante as gravações do álbum de estréia na Chappell Studios em Londres, o grupo entrou na sessão somente com um arranjador, o empresário Giorgio Gomelsky e uma cópia da master de Sgt. Pepper’s para referência. Por esse motivo, entre outros, a semelhança em tantos elementos, tanto é que ganhou o apelido de “Giorgio Gomelsky’s Lonely Hearts Club Band”.
Apesar do fracasso comercial na época, “We Are Ever So Clean” se tornou um clássico cult, adorado por milhares de fãs de música psicodélica e pop dos anos 60. E mesmo que tenha sofrido tantas comparações (algumas vezes até justas), Blossom Toes entrou para a história como um dos grupos mais importantes do gênero com seu álbum de estréia, listado como um dos mais importantes da psicodelia pela Record Collector’s “100 Greatest Psychedelic Records”.
Pra mim, esse disco representa muito mais. Fez parte da minha formação musical e sem dúvida, um dos discos que mais ouvi na vida. Coloco ele no meu Top 5 de discos favoritos, claro, se não contarmos nenhum disco dos Beatles. Também representa o início do meu relacionamento com meu pai de fato. Já não era mais totalmente uma criança, por isso conseguia conversar sobre assuntos mais “adultos”, e coisas das quais ele tinha interesse. Devo minha amizade com ele a momentos como esse, de descobertas, ensinamentos e ótimas influências. Blossom Toes é uma jóia da música e com certeza merecia um lugar maior de destaque, afinal, o que poderia ser mais puro ou limpo do que uma língua na maquina de lavar?
Ficha Técnica:
Brian Belshaw: baixo, vocais
Jim Cregan: guitarra, vocais
Brian Godding: guitarra, teclados, vocais
Kevin Westlake: bateria
David Whittaker: orquestração
Produção: Giorgio Gomelsky
Engenheiro de Som: John Timperley
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